terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Por que as greves e manifestações são hoje sistematicamente derrotadas em todo o mundo?


Reformas que atacam brutalmente os trabalhadores estão ocorrendo em todo o mundo. Como comprovado na prática no Brasil, agora na Argentina e antes na França, as greves e manifestações se mostram impotentes, são completamente domesticadas e não causam mais nenhuma surpresa para a classe dominante. As greves, porque a maioria dos trabalhadores estão no setor de serviços, afetam mais os próprios proletários que usam esses serviços do que os patrões, que, por sua vez, praticam "diversificação de investimentos", isto é, cada um investe simultaneamente em muitas outras empresas, ações, bolsa, outros países etc de modo que mal são afetados pela greve. Com isso, os proletários cada vez menos reconhecem a luta dos trabalhadores em greve como a luta deles próprios. As manifestações, por outro lado, são apenas aparência, falsas lutas, sendo totalmente controladas, contidas e neutralizadas pela polícia com sofisticados métodos de controle de multidões, pela esmagadora superioridade em armas e pela aterrorizante mobilização de mercenários (milícias, grupos de extermínio, gangues de traficantes etc). 

Diferentemente, no início do século  XX, uma proporção muito maior dos proletários, geralmente a maioria, estava no setor industrial, e suas greves afetavam diretamente os patrões e não os demais proletários, que por isso reconheciam a luta dos trabalhadores da indústria como a luta deles mesmos. Desse modo, as greves se espalhavam internacionalisticamente, ocorrendo em muitos países ao mesmo tempo, de forma que os patrões não tinham para onde fugir com seus "investimentos" (essa simultaneidade internacional da luta dos trabalhadores era o objetivo da Associação Internacional dos Trabalhadores já na segunda metade do século XIX, que deu origem à música "A Internacional"). Essa situação atingiu um ponto inescapável para os patrões, forçando-os a adotarem, entre os anos 1920 e 1930, a jornada de oito horas de trabalho simultaneamente no mundo inteiro (antes disso, a jornada geralmente era de 14 a 16 horas), assim como o direito a aposentadoria. Precisamente as coisas que estão hoje sob brutal ataque.

Porém, como explicamos no primeiro parágrafo, as condições atuais são completamente diferentes das do início do século XX. Essas condições nos indicam que a perspectiva prática descrita no texto Greve e produção livre é a única que, de fato, parece ter o potencial de permitir que os proletários (trabalhadores e desempregados) possam novamente se associar internacionalisticamente e impor ditatorialmente a satisfação das necessidades humanas contra a ditadura do dinheiro. 


Outros dois textos que são tentativas de investigar as condições que teremos que criar para essa tática dar certo são: 
Breve crítica à ideia de economia paralela anticapitalista  e 
Condições de existência universalmente interconectadas/interdependentes

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Quando as insurreições morrem - Gilles Dauvé

Traduzimos Quando as insurreições morrem, de Gilles Dauvé, texto que é uma contribuição fundamental para entender a história das revoluções e contrarrevoluções que aconteceram na primeira metade do século XX, especialmente o período de 1917 até 1937, abrangendo as insurreições do trabalhadores na Itália, na Alemanha, na Rússia e na Espanha, a relação entre a derrota dessas insurreições e o crescimento da social-democracia, da democracia, do fascismo e do nazismo e a maneira como o Estado se converte em democracia e ditadura conforme as necessidades do capital.

Link para o texto: Quando as insurreições morrem - Gilles Dauvé



sábado, 2 de setembro de 2017

Inteligência artificial, desemprego e renda básica universal: mais uma panaceia da classe proprietária



A classe proprietária - ou pelo menos seus chefados na área de alta tecnologia [1] - parece preocupada com o escoamento de suas mercadorias caso se realize a previsão de a IA (inteligência artificial) desempregar absoluta e definitivamente a humanidade [2]. Afinal, são tão pouco "imaginativos" que não está na sua previsão que as máquinas com IA sejam ao menos tão inteligentes que os capitalistas possam privá-las (como faz a nós há séculos) de suas condições de existências materiais - submentendo-as à privação de propriedade, isto é, à propriedade privada - de modo que elas também se vejam forçadas a se vender "voluntariamente" no mercado de trabalho para comprar deles os meios de sobreviver [3], escoando suas mercadorias. Fraca em imaginação, a classe proprietária busca então incumbir o problema por ela previsto (o da IA atrapalhando o escoamento de mercadorias) ao Estado, a instituição responsável pelas condições infraestruturais necessárias para a acumulação do capital. O Estado daria uma renda básica universal [4] à população para que o escoamento continue, realizando e retornando para as empresas o valor das mercadorias que foram produzidas, o que permitiria a continuidade da acumulação do capital, da produção pela produção. 

Enquanto isso, burocratas, reformistas e socialdemocratas se entusiasmam com a "pauta da renda básica universal", vista como capaz de arrebanhar "o povo", engajar "o cidadão" no espetáculo do pastoreio político (esquerda ou direita), quer dizer, vista como o esperado sonho enfim capaz de fazer a população abandonar de uma vez por todas a luta autônoma - descartando finalmente toda a "velha e obsoleta" luta de classes. 

Porém, vejamos com mais detalhes como a IA pode concretamente modificar a sociedade capitalista e como a renda básica universal pode ser implantada na prática. 

Enquanto só em algumas empresas ocorrer automatização total com IA (ou só em empresas em poucas regiões ou países), i.e., enquanto em todas as outras que concorrem com elas isso ainda não ocorreu, estas empresas concorrentes ver-se-ão inevitavelmente pressionadas, para não falirem diante do concorrente ultra-automatizado, a aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores nelas empregados (reduzir salários e aumentar a intensidade e o tempo de trabalho), esperando que assim ainda possam vender suas mercadorias com um preço e qualidade competitivos frente aos concorrente. 

Esse "trabalho a mais" feito em todas essas empresas para ao menos continuarem existindo e não falirem é a fonte do "valor a mais" que se acumula nas empresas ultra-automatizadas com IA (que podem mesmo não empregar ninguém). Essa é a fonte do super-lucro ou lucro extraordinário que, mesmo hoje (na verdade, desde a revolução industrial no séc. XVIII), se acumula nas empresas de alta tecnologia, super-lucros que parecem magicamente cair do céu "por virtude ou mérito exclusivo de empreendedores geniais". Em suma, as empresas ultra-automatizadas só conseguirão ainda vender mercadorias com valor e ter lucros enquanto suas mercadorias comandam ou impõem a exploração intensificada dos trabalhadores no resto da sociedade (e no resto do mundo), tanto por seus concorrentes quanto a daqueles que, para comprar mercadoria deles, precisam trabalhar intensificadamente para conseguir dinheiro suficiente (p. ex., fazendo "bicos", trabalhos informais ou fazendo mais de um trabalho). 

Por essa razão material que frustra todas as boas intenções, o capital (seja ele particular ou concentrado no Estado sob a direção formal de burocratas de esquerda ou direita) pode estabelecer uma "renda básica universal" unicamente na medida em que ela sirva para manter uma massa de proletários permanentemente disponível e pronta (ou seja, que não se tornem inutilizáveis pela fome e permaneçam "educados") numa condição "ótima" para ser usada, consumida para gerar máximo lucro, e descartada a qualquer instante pelas empresas, e unicamente na medida em que essa renda básica não seja tão alta que os proletários possam se dar ao luxo de se recusar a se vender no mercado de trabalho por um baixo salário. [5]

Por outro lado, na hipótese especulativa mais ousada, a de a automatização total com IA deixar de ser monopólio de algumas empresas e se difundir de modo a ser adotada igualmente em todos os processos de trabalho de todas as empresas que ainda existirem, não só a concorrência entre elas as forçará a vender suas mercadorias a um preço idêntico aos custos, tornando o lucro impossível, como também, e isso é muito mais fundamental, graças à essa automatização total (que prescindiria de todo trabalho humano), esses capitais (e não importa se todos os capitais forem concentrados no Estado) já não terão absolutamente nenhum valor, porque as mercadorias já não poderão impor nem comandar nenhum trabalho alheio, uma vez que ele se tornou inútil para o capital. 

Os preços já não valerão absolutamente nada. Mesmo que o Estado ofereça dinheiro gratuitamente, como a "renda básica universal", ele terá que atribuir arbitrariamente valor aos preços, decretando o valor da equivalência do dinheiro que ele está dando com relação aos produtos. Arbitrariamente porque essa atribuição de valor não terá mais substância - e a substância do valor é a equivalência do trabalho alheio, baseada no tempo de trabalho socialmente necessário para produzir as mercadorias globalmente na sociedade capitalista a cada momento. A quantificação do valor atribuída por decreto a cada coisa será incessantemente frustrada, reduzida a zero, a não ser que a classe proprietária consiga descartar realmente a sociedade capitalista para instaurar uma espécie de despotismo oriental mundial... quando então usará critérios "transcendentes", místicos, religiosos (ainda que numa forma cientificista e tecnocrática, como o "valor-energia", "valor-entropia"), ritualísticos, sacros, única maneira de estabelecer a equivalência de alhos com bugalhos.

É claro que, desde que essa perda de substância do valor começasse a ocorrer devido à difusão exponencial da IA prevista nessa especulação, muito antes que pudesse acontecer a situação hipotética descrita antes (difusão da IA em todas as empresas), na ausência da irrupção do proletariado como classe histórico-mundial, a sociedade capitalista e seus Estados já teriam sofrido um colapso econômico que automática e rapidamente acarretará a reinstauração das condições arcaicas originais que o capital depende para brotar, se destacar e continuar se acumulando. A própria "mão invisível do mercado" ou a entidade denominada "destruição criadora" executaria essa espécie de "reset" histórico automático. 

Essa hipotética crise não é diferente da barbárie que já estamos vendo: uma guerra generalizada de máfias, identitarismos, fundamentalismos, neo-feudalismos, nacionalismos, etnicismos etc, em que os proletários são mantidos esmagados como classe, ocupados no trabalho assalariado da matança uns dos outros pela defesa de "suas" classes dominantes em guerra entre si. Situação que faz os aspectos mais banais da vida cotidiana (p. ex., a simples ida à padaria para comprar pão) extremamente violentos, um verdadeiro trabalho, uma atividade repulsiva e perigosa, cuja execução só será aceita por alguém desesperado e que precisa ganhar algum dinheiro para sobreviver (ou seja, proletários). Com essas novas dimensões da vida tornadas "trabalho" ("trabalhizadas"), automaticamente surgirão competições pela posse de rotas comerciais (uma espécie de nova "era das grandes navegações"), companhias, inumeráveis "empreendedores focados" em uma multidão de "oportunidades" de "novos nichos", e capitais altamente lucrativos, porque voltou a haver muita "substância do valor", para subsunção formal e depois real desse trabalho ao capital. 

Em conclusão, pode-se dizer que, com o papo furado de renda básica e IA, os empresários e burocratas - a classe proprietária  - apenas acrescentam mais um novo elemento contemplativo à sociedade do espetáculo. Partir da análise especulativa sobre o futuro da tecnologia e da sociedade capitalista leva a ver a situação atual de maneira igualmente especulativa, imaginária. A especulação sobre IA leva a enxergar a totalidade da humanidade atual de antemão como lumpens já expulsos do esfera da produção (que já se moveria sozinha, como muitos fetichistas da mercadoria, como os novos críticos críticos, imaginam que já é) e, consequentemente, incapazes de subverter a sociedade por si mesmos de baixo para cima. Dessa imaginação especulativa decorre naturalmente a defesa de que, se eles já são impotentes, reduzidos a nada, eles devem "militar", pedir e agradecer a deus que uma vanguarda de iluminados filantrópicos se proponha a usar o Estado e o capital para implementar de cima para baixo reformas caritativas. 

Em contraposição a todo esse especulativismo, buscamos partir das atuais condições concretas dos proletários [6], das potencialidades da situação atual no que se refere às capacidades e necessidades deles de se associarem e fraternizarem contra a classe proprietária por toda parte, internacionalisticamente, ou seja, de modo cosmopolita, sabotando de baixo todas as competições e guerras empresariais e bélicas em todo o mundo. Ao constituir-se como classe antagônica histórico-mundial, o objetivo da luta do proletariado é invariável: que ao invés de competirem entre si pela sujeição aos proprietários privados - não importa se particulares ou Estados - dos meios de vida e de produção dos quais depende sua sobrevivência, eles suprimam a sociedade de classes tomando as forças produtivas mundiais para colocá-las sob o poder dos indivíduos livremente associados conforme os seus desejos, paixões, pensamentos, projetos, necessidades e capacidades em escala global - abolindo o trabalho, a propriedade privada, a mercadoria, as fronteiras e o Estado. Trata-se precisamente de tornar impossível toda equivalência (valor, remuneração, preço, pagamento, mercadoria, escambo, "mérito"...) mediante a livre disposição universal (isto é, à todos) das condições práticas materiais da livre criação das singularidades, individualidades, multiplicidades livres, que assim não mais podem ser submetidas à briga incessante pela comparação, pela equivalência, que a coerção massificante da competição impunha.

humanaesfera, setembro de 2017

Notas:

[1] Relatórios sobre inteligência artificial, desemprego e UBI (renda básica universal) foram destaque no Forum Econômico Mundial, de 2016 e 2017. É claro que, como sempre, uma piedosa filantropia, dessa vez para com os futuros desempregados, é o que eles dizem preocupá-los.

[2] Como expresso nesse artigo: Deep Learning Is Going to Teach Us All the Lesson of Our Lives: Jobs Are for Machines 

[3] Nessa hipótese especulativa, a única que faz justiça com a "inteligência" na expressão "Inteligência Artificial", a sociedade capitalista continuará condenada a criar os seus próprios coveiros - ou seja, nós, o proletariado. 

[4] Também chamada Renda Básica de Cidadania, Rendimento de Cidadania, Universal Basic Income (UBI).

[5] Sobre o argumento dessa última frase, ver o texto "What is wrong with free money?" dos Gruppen Gegen Kapital und Nation (Grupos contra o capital e a nação) 

[6] Por exemplo: Notas sobre composição de classe, de Kolinko

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Trechos de "Notas sobre composição de classe" (2002), de Kolinko

Abaixo selecionamos alguns trechos de "Notas sobre composição de classe" (do grupo Kolinko). O texto integral pode ser encontrado neste link.

[A INSUFICIÊNCIA DO CONCEITO FORMAL DE LUTA DE CLASSES]

"Em geral, as várias correntes [leninismo, anarco-sindicalismo, comunismo de Conselhos etc.] criticam o "capital" somente como uma relação formal de exploração: o sobretrabalho é apropriado por mãos privadas ou pelo estado. O real processo material de exploração/trabalho é negligenciado. Essa noção formal de capital leva a uma noção formal de classe operária: uma massa de explorados que devem vender sua força de trabalho devido à sua "despossessão" dos meios de produção. Dessa noção de classe operária diferentes conclusões políticas foram extraídas: os leninistas enfatizam a necessidade de um partido político capaz de unir as massas, cuja única coerência é a semelhança formal dos não-proprietários. O partido deve dar uma direção estratégica para as lutas espontâneas dos explorados. Os comunistas de conselhos apenas observam que a massa de explorados cria suas próprias formas de organização na luta. Eles negligenciam a questão da estratégia e vêem como sua principal tarefa difundir as experiências de auto-organização entre os proletários.
[...]
A noção formal de exploração (sobretrabalho expropriado) é incapaz de revelar a potência de auto-emancipação que os proletários podem desenvolver. Enquanto "não-proprietários" dos meios de produção, sua potência não pode ser explicada. O mero fato de que todos são explorados não cria uma coerência real entre os indivíduos. A possibilidade de auto-organização deriva apenas do fato de que os proletários têm uma relação prática entre si e com o capital: eles trabalham juntos no processo de produção e são parte da divisão social do trabalho. Como produtores, além de se oporem ao capital como "trabalhadores assalariados" formais, em sua prática específica eles produzem o capital. Somente emergindo dessa relação, as lutas operárias podem desenvolver seu poder. O isolamento dos proletários, em empresas, categorias etc., não pode ser superado "artificialmente", tomando a semelhança na condição de "explorado" como fundamento para uma organização. Essa tentativa geralmente termina em outra organização sindical (dita "de base"): sempre haverá a necessidade de uma instituição exterior se a coerência dos proletários não está baseada em sua real cooperação social, mas somente na "coerência formal" do trabalho assalariado. O leninismo não compreende essa profunda razão das formas sindicais das lutas operárias. Ele encara o problema como uma mera questão de direção: a coerência externa é construída pelos sindicatos ou pelo partido comunista? A crítica ao leninismo geralmente se limita a questionar a forma dessa coerência externa: ela é "anti-democrática", não é criada pelos próprios operários etc. As críticas esquerdistas muito raramente analisam o processo de produção em termos de fundamento para a coerência da luta operária. Portanto, eles tendem a apenas seguir a espontaneidade das lutas, sem compreender ou contribuir com uma direção estratégica interna. Por que se desenvolvem correntes políticas diferentes, apesar da semelhança de suas noções de classe?"

[CRÍTICA MATERIALISTA AO LENINISMO]

"Os comunistas de conselhos e outros criticam principalmente o caráter autoritário e anti-democrático do Partido leninista. Pensamos que a crítica mais profunda ao leninismo consiste na análise de como a forma bolchevique de partido emergiu das condições materiais específicas na Rússia, no final do séc. XIX e início do séc. XX. Uma sociedade agrária com aldeias dispersas e isoladas, e alta taxa de doenças endêmicas e poucas zonas industrializadas só poderia ser unida politicamente por uma organização de massas externa. Portanto, a crítica mais profunda dos comunistas de conselhos é a de que essa espécie de organização não era útil nem apropriada para sua situação histórica: nas regiões industrializadas do Oeste Europeu durante a década de 1920. Eles perceberam que as fábricas já haviam unido os operários e que a criação dos conselhos operários durante o período revolucionário de 1918-23 foi a resposta política da classe operária. Hoje, poucas críticas ao leninismo refletem esse "núcleo material". A crítica geralmente permanece num nível político, não tocando nas raízes materiais do leninismo e outras correntes. Hoje, devemos recolocar a crítica em seu devido lugar, analisando as mudanças na organização da exploração e da luta operária. Esta é a pré-condição para o desenvolvimento de novas estratégias políticas. A noção de composição de classe pode nos ajudar nisto."

[COMPOSIÇÃO TÉCNICA DE CLASSE & COMPOSIÇÃO POLÍTICA DE CLASSE]

"Na análise da coerência entre modo de produção e luta operária, distinguimos duas noções diferentes de composição de classe:

* a "composição técnica de classe" descreve como o capital reúne a força de trabalho; ou seja, as condições no processo imediato de produção (por exemplo, a divisão do trabalho em diferentes departamentos, separação entre "administração" e produção, uso de maquinário especial) e a forma de reprodução (modo de vida, estrutura familiar etc.)

* a "composição política de classe" descreve como os operários voltam a "composição técnica" contra o capital. Eles fazem de sua coesão, como força de trabalho coletiva, o ponto de partida para sua auto-organização e usam os meios de produção como meios de luta. Ainda estamos discutindo qual ponto particular, no processo de luta dos proletários, pode ser descrito em termos de "composição política de classe". 
[...]

Alguns exemplos de como as específicas condições de produção influenciam o conteúdo político da luta operária - e sua relação com o capital como um modo de produção:

Relação com a forma-salário:

No capitalismo, a relação assalariada, aparecendo como "a troca individual de dinheiro por trabalho", oculta o fato de que o capital explora a força de trabalho coletiva dos proletários. Um operário que é assalariado com uma centena de outros, que devem fazer o mesmo trabalho, está mais apto para observar que os "contratos individuais" são uma farsa do que, por exemplo, um artesão que "possui" habilidades especiais e portanto "trabalho para vender" especial.

Relação com o trabalho:

O trabalho no capitalismo é abstrato. As tarefas específicas que realizamos não são importantes, mas o fato de que o trabalho acrescenta mais-valia ao produto é. Um trabalhador que deve fazer um trabalho "não qualificado" junto com outros terá uma relação com o trabalho diferente da do trabalhador especializado. O primeiro realmente experimentará o trabalho como abstrato e será menos propenso a glorificá-lo e a se organizar dentro dos limites de sua profissão.

Relação com outros proletários:

Uma noção formal de classe não vai muito longe. Isso se revela quando vemos a composição da força de trabalho no chão da fábrica. Poderíamos afirmar que o capataz, o chefe de equipe e o gerente são também "trabalhadores assalariados" e portanto explorados, mas quase toda luta deve se impor contra esses "patrõezinhos". A divisão (hierárquica) do trabalho no processo de produção social é o fundamento para as divisões sexistas e racistas dentro da classe operária. Assim, por um lado, o capital divide os proletários, mas por outro, ele une proletários de todas as cores de pele, gênero, nacionalidade etc., no processo de produção. Se as divisões entre os operários são questionadas ou fortalecidas é geralmente decidido na luta. Fábricas, setores específicos etc. com uma composição "colorida" são especialmente decisivos nesse processo.

Relação com os meios de produção:

O capital é o processo e o resultado de um modo de produção no qual o trabalho morto (máquinas, trabalho materializado) domina a força de trabalho viva. Um operário que deve obedecer o rítmo das máquinas e observa que, apesar do progresso tecnológico, sua situação não melhora, está mais propenso a atacar o capital como um modo de produção antagônico. Os que atuam num processo de trabalho artesanal, e que são ainda "senhores" de suas ferramentas, serão mais propensos a ver o "patrão" como o símbolo da exploração.

Relação com o produto

Os proletários nas esferas da produção em massa compreendem que a qualidade dos produtos tem um papel secundário e que o importante é a quantidade. Geralmente, não conhecemos o valor de uso do produto, porque só vemos uma parte do processo de produção e num estágio em que o produto ainda não tem valor de uso. Muitos proletários não trabalham com um produto material, mas sob condições industriais semelhantes para realizar "serviços". Devemos discutir como essa "imaterialidade" dos produtos repercute na luta dos operários.

Fica em aberto para nós a questão de como as lutas dos "artesãos", trabalhadores rurais e outros proletários que não trabalham sob condições "industriais" podem desenvolver um caráter anticapitalista. É uma questão decisiva a de como essas lutas podem se unir com as lutas do "proletariado industrial", apesar das diferentes condições e sem uma mediação externa (como o assim chamado movimento "Anti-Globalização", "Ação Global dos Povos", os "Zapatistas" e outras organizações que pretendem ligar diferentes "movimentos sociais")."

[A QUESTÃO DA DIVISÃO HIERÁRQUICA DOS TRABALHADORES EM CORES DE PELE, GÊNERO, NACIONALIDADE...]

"No processo social de produção, o capitalismo cria e conecta desenvolvimento e subdesenvolvimento como uma reação à contradição de classe, que explica o caráter dinâmico do sistema. Nas fábricas hi-tech existem departamentos de diferentes níveis "tecnológicos". Essas fábricas são conectadas a fornecedores de diferentes padrões de desenvolvimento, até os de trabalho intensivo (sweat-shops) no "terceiro mundo". Os diferentes níveis de desenvolvimento são o fundamento material para as divisões e a desigualdade da luta de classes. As lutas operárias que podem se generalizar ao longo das linhas de "desenvolvimento desigual" levam as condições de produção a se tornarem similares. As lutas dos operários nas fábricas de automóveis nos anos 60-80 tiveram como resultado que as condições nas fábricas principais se tornaram similares em todo mundo, incluindo antigas "zonas de subdesenvolvimento" (México, Brasil etc.): no nível de tecnologia e também para os proletários (relação similar entre salário e produto). O capital reage à "composição política de classe" (generalização da luta de classes) com uma "recomposição técnica", com a reprodução do desenvolvimento desigual em um nível mais alto: as regiões são "desindustrializadas"; em outras, o capital faz um grande avanço tecnológico; velhas fábricas "centrais" são divididas em diferentes unidades de uma cadeia de produção; a produção é "globalizada" etc. O capital cria novos centros de desenvolvimento que podem se tornar novos pontos de generalização dos futuros movimentos da classe operária. Dessa forma, a coerência interna dos movimentos proletários vindouros é antecipada. Sua estratégia não surge separada nas cabeças dos revolucionários, mas reside no processo de desenvolvimento material (de divisão do trabalho, maquinário etc.) enquanto tal."

[A FUNÇÃO ESPECÍFICA DOS REVOLUCIONÁRIOS]

"A função específica dos revolucionários não pode ser explicada por uma "consciência política" que a luta de classes não alcançaria por si mesma. Ela só pode ser derivada de uma visão e interpretação geral das coisas que acontecem. O poder, as possibilidades de auto-organização, de expansão e generalização são colocados pelas condições de produção. A tarefa dos revolucionários é mostrar a coerência entre as condições materiais e práticas e a perspectiva das lutas. O movimento da classe ocorrerá na rede de desenvolvimento e subdesenvolvimento. Portanto, devemos mostrar a conexão das diferentes partes dessa rede e as razões políticas da desigualdade. A análise do fundamento material das lutas operárias também determina onde devemos intervir.[...] "

Link para o texto completo:  Notas sobre composição de classe - Kolinko

Outro texto sobre composição de classe:

Definição de composição de classe - Zerowork

A rede de lutas na Itália - Romano Alquati

A logística e a fábrica sem muros - Brian Ashton




domingo, 6 de agosto de 2017

Trechos de Oscar Wilde em "A alma do homem sob o socialismo" (1891)

Alguns trechos do texto de Oscar Wilde que está neste link


[CONTRA A CARIDADE]


"As emoções do homem são despertadas mais rapidamente que sua inteligência; e, como ressaltei há algum tempo em um ensaio sobre a função da crítica, é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a idéia. Conseqüentemente, com intenções louváveis embora mal aplicadas, atiram-se, graves e compassivos, à tarefa de remediar os males que vêem. Mas seus remédios não curam a doença: só fazem prolongá-la. De fato, seus remédios são parte da doença.

Buscam solucionar o problema da pobreza, por exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma teoria mais avançada, entretendo o pobre.

Mas isto não é uma solução: é um agravamento da dificuldade. A meta adequada é esforçar-se por reconstruir a sociedade em bases tais que nela seja impossível a pobreza. E as virtudes altruístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta. Os piores senhores eram os que se mostravam mais bondosos para com seus escravos, pois assim impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e compreendido pelos que o contemplavam. Da mesma forma, nas atuais circunstâncias na Inglaterra, os que mais dano causam são os que mais procuram fazer o bem. Por fim presenciamos o espetáculo de homens que estudaram realmente o problema e conhecem a vida - homens cultos do East End - virem a público implorar à comunidade que refreie seus impulsos altruístas de caridade, benevolência e coisas desta sorte. Fazem-no com base em que essa caridade degrada e desmoraliza. No que estão perfeitamente certos. A caridade cria uma legião de pecados.

E há mais: é imoral o uso da propriedade privada com o fim de mitigar os males horríveis decorrentes da instituição da propriedade privada. É tão imoral quanto injusto.
[...]
Freqüentemente ouvimos dizer que os pobres são gratos pela caridade. Decerto alguns são gratos, mas nunca os melhores dentre eles. São ingratos, insatisfeitos, desobedientes e rebeldes.

Têm toda razão em o serem. Para eles, a caridade é uma forma ridícula e inadequada de restituição parcial, ou esmola piedosa, em geral acompanhada de alguma tentativa por parte da alma apiedada de tiranizar suas vidas. Por que deveriam ser gratos pelas migalhas que caem da mesa do homem rico? Deveriam é estar sentados a ela, e já começam a se dar conta disso.

Quanto à insatisfação, aquele que não se sentisse insatisfeito com essa condição inferior de vida seria um perfeito estúpido. A desobediência é, aos olhos de qualquer estudioso de História, a virtude original do homem. É através da desobediência que se faz o progresso, através da desobediência e da rebelião. Às vezes elogiam-se os pobres por serem parcimoniosos. Mas recomendar-lhes parcimônia é tão grotesco quanto insultuoso. É como aconselhar a um homem que esteja passando fome que coma menos. Que um trabalhador do campo ou da cidade usasse de parcimônia, seria absolutamente imoral. Um homem não deveria estar pronto a mostrar-se capaz de viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, e deveria ou roubar ou viver às expensas do Estado, o que muitos consideram uma forma de roubo. Quanto a pedir esmolas, é mais seguro pedir do que tomar, mas é bem mais digno tomar do que pedir. Não: um homem pobre que seja ingrato, perdulário, insatisfeito e rebelde possui decerto uma personalidade plena e verdadeira. Constitui, de qualquer forma, um protesto sadio. Quanto aos pobres virtuosos, é natural que deles se tenha piedade, mas não admiração. Fizeram um acordo secreto com o inimigo e venderam seus direitos inatos em troca de um péssimo prato de comida. Devem também ser muito tolos. Posso compreender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita sua acumulação, desde que nessas circunstâncias ele próprio seja capaz de atingir alguma forma de existência harmoniosa e intelectual. Parece-me, porém, quase inacreditável que um homem cuja existência se perdeu e abrutalhou por força dessas mesmas leis possa vir a concordar com sua vigência."


[A PROPRIEDADE PRIVADA DESTRÓI O VERDADEIRO INDIVIDUALISMO]

"A admissão da propriedade privada, de fato, prejudicou o Individualismo e o obscureceu ao confundir um homem com o que ele possui. Desvirtuou por inteiro o Individualismo. Fez do lucro, e não do aperfeiçoamento, o seu objetivo. De modo que o homem passou a achar que o importante era ter, e não viu que o importante era ser. A verdadeira perfeição do homem reside não no que o homem tem, mas no que o homem é. A propriedade privada esmagou o verdadeiro Individualismo e criou um Individualismo falso. Impediu que uma parcela da comunidade social se individualizasse, fazendo-a passar fome. E também à outra, desviando-a do rumo certo e interpondo-lhe obstáculos no caminho. De fato, a personalidade do homem foi tão completamente absorvida por suas posses que a justiça inglesa sempre tratou com um rigor muito maior as transgressões contra a propriedade do que as transgressões contra a pessoa, e a propriedade ainda é a garantia da cidadania plena. Os meios indispensáveis à obtenção de dinheiro são também muito aviltantes. Numa sociedade como a nossa, em que a propriedade confere distinção, posição social, honra, respeito, títulos e outras coisas agradáveis da mesma ordem, o homem, por natureza ambicioso, fez do acúmulo dessa propriedade seu objetivo, e perseguirá sempre esse acúmulo, exaustivo e tedioso, ainda que venha a obter bem mais do que precise, possa usar ou desfrutar, ou mesmo que chegue até a ignorar quanto possui. O homem irá se matar por excesso de trabalho com o fim de garantir a propriedade, o que não é de surpreender, diante das enormes vantagens que ela oferece. É de lamentar que a sociedade, construída nessas bases, force o homem a uma rotina que o impede de desenvolver livremente o que nele há de maravilhoso, fascinante e agradável - rotina em que, de fato, perde o prazer verdadeiro e a alegria de viver. Nas atuais condições, o homem se sente também muito inseguro. É possível que um comerciante riquíssimo se encontre - e em geral se encontra - a todo instante da vida à mercê de coisas que lhe escapam ao controle. Quando o vento sopra um nó a mais, ou o tempo muda de repente, ou ocorre algum fato insignificante, poderá ver o navio ir a pique, enganar-se nas especulações e se descobrir em meio à pobreza - a posição social por água abaixo. Nada poderia prejudicar um homem a não ser ele próprio. Nada poderia lesá-lo. O que um homem realmente tem, é o que está nele. O que está fora dele deveria ser coisa sem importância.

Abolida a propriedade privada, haveremos de ter o Individualismo verdadeiro, harmonioso e forte. Ninguém desperdiçará a vida acumulando coisas ou à cata de símbolos para elas. Haverá vida. Viver é o que há de mais raro neste mundo. Muitos existem, e é só."

"O egotista é aquele que impõe exigências aos outros, e o Individualista não desejará tal coisa, pois não terá prazer nela. Quando o homem tiver compreendido o Individualismo, terá também compreendido a solidariedade e a praticará livre e espontaneamente. Até hoje dificilmente o homem tem cultivado a solidariedade. Ele é solidário apenas na dor, e a solidariedade na dor não é a forma mais elevada de solidariedade.

Toda solidariedade é pura, mas na dor tem sua forma menos pura. Está maculada pelo egotismo. Está inclinada a se tornar mórbida. Há nela um certo temor por nossa própria segurança. Temos medo de que nós próprios venhamos a ficar como o leproso ou o cego, e ninguém se importe conosco. Além do mais, tal solidariedade é muito limitada. Deveríamos ser solidários com a vida em sua totalidade, não apenas na dor e na doença, mas também na alegria, na beleza, na energia, na saúde e na liberdade. A solidariedade mais ampla é, naturalmente, a mais difícil: exige maior altruísmo. Qualquer um pode se sentir solidário na dor sofrida por um amigo, mas é preciso uma natureza muito superior - a natureza de um verdadeiro Individualista - para se sentir solidário no êxito alcançado por um amigo.

Nos dias de hoje, a pressão da concorrência e luta por oportunidades torna rara essa solidariedade, que é também sufocada pelo ideal moral de uniformização e conformação à norma, o qual prevalece em toda parte, mas que talvez seja mais condenável na Inglaterra.

Sempre haverá, é claro, a solidariedade na dor. É um dos instintos primários do homem.

Os animais que têm individualidade, os animais superiores, por assim dizer, compartilham-na conosco. Mas cumpre lembrar que, se a solidariedade na alegria causa mais alegria entre nós, a solidariedade na dor, por sua vez, não reduz o sofrimento no mundo. Pode tomar o homem mais capaz de suportar o mal, embora o mal permaneça. A solidariedade no definhamento que precede a morte em certas moléstias, não pode debelá-lo: isto cabe à ciência. E quando o Socialismo tiver resolvido o problema da miséria e a ciência o da enfermidade, diminuirá o campo de ação dos sentimentalistas, e a solidariedade humana será ampla, sadia e espontânea.

O homem terá alegria na contemplação da alegria de seu semelhante.

Será por meio da alegria que se desenvolverá o Individualismo do futuro."


[SOB A PROPRIEDADE PRIVADA, A TECNOLOGIA, CUJA FUNÇÃO É ACABAR COM O TRABALHO, IMPÕE QUE SE TRABALHE SEMPRE MAIS PARA SOBREVIVER]

"Como mencionei a palavra trabalho, não posso me furtar a dizer que há muito disparate no que se escreve e discute atualmente sobre a dignidade do trabalho braçal. Nada há de necessariamente digno nesse trabalho, em sua maior parte aviltante. É prejudicial ao homem, do ponto de vista mental e moral, realizar qualquer coisa em que não encontre prazer, e muitas das formas de trabalho são atividades completamente desprezíveis, e assim devem ser encaradas. Varrer durante oito horas uma esquina lamacenta, num dia açoitado pelo vento leste, é uma ocupação desagradável. Varrê-la com dignidade mental, moral ou física, parece-me impossível. Varrê-la com satisfação é de estarrecer. O homem foi feito para algo melhor que estar imerso na imundície. Todo trabalho desta sorte deveria ser feito por máquinas.

E não tenho dúvidas de que o será. Até hoje o homem vem sendo, em certa medida, escravo das máquinas, e há algo de trágico no fato de que, tão logo inventou a máquina para trabalhar por ele, o homem tenha começado a passar fome. Isto decorre, no entanto, de nosso sistema de propriedade e de nosso sistema competitivo. Um único homem possui a máquina que executa o trabalho de quinhentos homens. Logo, quinhentos homens são postos na rua; sem trabalho e vítimas da fome, passam a roubar. Aquele homem sozinho detém e estoca a produção da máquina. Possui quinhentas vezes mais do que deveria possuir e provavelmente, o que é ainda mais importante, possui bem mais do que realmente quer. Fosse a máquina propriedade de todos, e todos se beneficiariam dela. Proporcionaria uma vantagem imensa à sociedade. Todo trabalho não intelectual, todo trabalho monótono e desinteressante, todo trabalho que lide com coisas perigosas e implique condições desagradáveis, deve ser realizado por máquinas. Por nós devem as máquinas trabalhar nas minas de carvão e executar todos os serviços sanitários, e ser o foguista das embarcações a vapor, e limpar as ruas, e levar mensagens nos dias chuvosos, e fazer tudo que seja maçante ou penoso. Atualmente, as máquinas competem com o homem. Em condições adequadas, servirão ao homem. Não resta dúvida de que esse será o futuro das máquinas. Assim como as árvores crescem enquanto o senhor rural dorme, enquanto a Humanidade estiver se distraindo, ou desfrutando do lazer cultivado - pois que a ele o homem se destina e não ao trabalho -, ou criando obras belas, lendo belas páginas, ou simplesmente contemplando o mundo com admiração e prazer, as máquinas estarão fazendo todo trabalho necessário e desagradável. O fato é que a civilização exige escravos. Nisso os gregos estiveram muito certos. A menos que haja escravos para fazer o trabalho odioso, horrível e desinteressante, a cultura e a contemplação tornam-se quase impossíveis. A escravidão humana é injusta, arriscada e desmoralizante. Da escravidão mecânica, da escravidão da máquina, depende o futuro do mundo. Quando os cientistas não mais forem convocados a ir até o deprimente East End para distribuir à gente faminta chocolate de má qualidade e cobertores de qualidade ainda pior, terão tempo disponível para planejar coisas maravilhosas e estupendas para satisfação própria e dos demais. Haverá grandes acumuladores de energia em cada cidade, em cada residência se preciso, e essa energia o homem converterá em calor, luz ou movimento, conforme suas necessidades. Isto é Utópico? Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras a que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, toma a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias." 

Para ler o texto completo, ver este link.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Um texto fundamental sobre Maio de 68, de Roger Gregoire e Fredy Perlman

Foi integralmente traduzido para o português o livro de Roger Gregoire & Fredy Perlman Comitês de ação dos trabalhadores e estudantes. França, maio de 68 que é um dos melhores relatos e análises de maio de 1968. Abaixo, alguns trechos:

"A consciência do poder coletivo é a primeira etapa em direção à apropriação do poder social (mas apenas a primeira etapa, como será mostrado logo a seguir). Conscientes do seu poder coletivo, os ocupantes da universidade, trabalhadores e estudantes, começam a se apropriar do poder de decidir, eles começam a aprender a dirigir suas próprias atividades sociais. O processo de desalienação política começa; a universidade é desinstitucionalizada; o prédio é transformado em um lugar que é dirigido pelos seus próprios ocupantes. Não há “especialistas” nem “responsáveis”. A comunidade é responsável coletivamente pelo que acontece, e pelo que não acontece, dentro do prédio ocupado. Atividades sociais anteriormente especializadas se tornam integradas nas vidas de todos os membros da comunidade. As atividades sociais não são mais executadas pela coerção direta e nem pela coerção indireta do mercado (i.e., a ameaça de pobreza ou fome). Como resultado, algumas atividades sociais, como arrumar o cabelo ou enfeitar as unhas, não são mais executadas. Outras atividades, como cozinhar, varrer os quartos, limpar os banheiros - tarefas executados por pessoas que não tem outra escolha em um sistema coercitivo - são deixadas sem fazer por vários dias. A ocupação mostra sinais de degradação: a comida é ruim, os quartos estão sujos, os banheiros estão inutilizáveis. Essas atividades se tornam a ordem do dia para a assembleia geral: todos estão interessados em sua execução eficiente, e ninguém é coagido institucionalmente para desempenhar essas tarefas. A assembleia geral é responsável pelo seu desempenho, o que significa que todos são responsáveis. Comitês de voluntários são formados. Um Comitê de Cozinha melhora a qualidade das refeições; a comida é de graça: ela é provida por comitês de vizinhança e por camponeses. Um serviço de arrumação se incumbe de manter os banheiros limpos e guarnecidos com papel higiênico. Cada comitê de ação limpa sua própria sala. As tarefas são executadas por professores, estudantes e trabalhadores. Nesse ponto, todos os ocupantes do Censier são trabalhadores. Não há mais  trabalhos de status superior e inferior; não existem mais tarefas intelectuais e manuais, trabalho qualificado e não qualificado; há apenas atividades socialmente necessárias.

Uma atividade que for considerada socialmente necessária por um punhado de ocupantes se torna a base para a formação de um comitê de ação. Cada pessoa é um pensador, um iniciador, um organizador, um trabalhador. Companheiros estão sendo feridos gravemente por policiais nas lutas na rua: um andar do Censier é transformado num hospital; doutores e estudantes de medicina cuidam dos pacientes; outros sem experiência médica ajudam, cooperam e aprendem. Um grande número de companheiros têm bebês e como resultado não podem tomar parte nas atividades que os interessam: os companheiros se juntam para formar uma creche. Os comitês de ação precisam imprimir panfletos, anúncios, relatórios: máquinas de mimeógrafos e papéis são encontrados e um serviço de impressão livre é organizado. Pessoas da cidade - observadores e participantes em potencial - afluem no Censier constantemente e são incapazes de se localizar em meio ao complexo sistema social que começou a se desenvolver no prédio: uma janela de informação é mantida na entrada e escritórios de informação são mantidos em cada andar para orientar os visitantes. Muitos militantes vivem longe do Censier: um dormitório é organizado.

O Censier, anteriormente uma universidade capitalista, é transformado num sistema complexo de atividades e de relações sociais auto-organizadas. Entretanto, o Censier não é uma Comuna autossuficiente removida do restante da sociedade. A polícia está na ordem do dia em cada assembleia geral. Os ocupantes do Censier estão plenamente cientes que suas atividades sociais auto-organizadas estão ameaçadas enquanto o Estado e o aparato repressivo não forem destruídos. E eles sabem que sua força, e mesmo a força de todos os estudantes e de alguns trabalhadores, não é suficiente para destruir o potencial do Estado para a violência.

A única força que pode colocar os ocupantes do Censier de volta no sono é uma força que é fisicamente forte o bastante para quebrar sua vontade: a polícia e o exército nacional ainda representam tal força.

Os meios de violência produzidos por uma indústria altamente desenvolvida são ainda controlados pelo Estado capitalista. E os ocupantes do Censier estão cientes de que o poder do Estado não será quebrado enquanto o controle sobre estas atividades industriais não passar aos produtores: eles “estão convencidos de que a luta não pode ser concluída sem a massiva participação dos trabalhadores”. [14] O poder armado do Estado, o poder que nega e ameaça aniquilar o poder da criação coletiva e de auto-organização manifestadas no Censier, só pode ser destruído pelo poder armado da sociedade. Mas antes que a população possa ser armada, antes que os trabalhadores tomem controle dos meios de produção, eles devem se tornar conscientes de sua capacidade de fazê-lo, eles devem se tornar conscientes do seu poder coletivo. E essa consciência do poder coletivo é precisamente o que estudantes e trabalhadores adquiriram depois que eles ocuparam o Censier e transformaram-no em um lugar de expressão coletiva. Consequentemente, a ocupação do Censier é uma ação exemplar, e o objetivo central dos militantes do Censier torna-se comunicar o exemplo. Todas as atividades auto-organizadas giram em torno dessa tarefa central. Antigas salas de aula se tornam oficinas de comitês de ação recém formados; em cada sala, projetos são sugeridos, discutidos e iniciados; grupos de militantes surgem com um projeto, e outros surgem para iniciar um novo." (Censier Libertado: Uma Base Revolucionária. O caráter exemplar da ocupação da universidade)

"[...]Na Sorbonne, no Censier, em Nanterre, e em outros lugares, a universidade foi proclamada uma propriedade social; os prédios ocupados tornaram-se ex-universidades. Os prédios foram abertos para toda a sociedade - estudantes, professores, trabalhadores - para qualquer um que desejasse ir lá. Além do mais, as ex-universidades foram geridas pelos seus ocupantes, fossem eles estudantes ou não, trabalhadores, camponeses. No Censier, de fato, a maioria dos ocupantes não era “estudante”. Essa socialização foi acompanhada por uma ruptura da divisão do trabalho, da divisão entre “trabalhadores” e “intelectuais”. Em outras palavras, a ocupação representou a abolição da universidade como uma instituição especializada restrita a um segmento específico da sociedade (estudantes). A ex-universidade se tornou socializada, pública, aberta a todos.

As assembleias gerais nas universidades foram momentos de auto-organização pelas pessoas dentro de um prédio específico, independente de suas  especializações anteriores. Elas não foram momentos de auto-organização a respeito de “seus próprios” assuntos.

Entretanto, isso foi o mais longe que a “escalada” foi. Quando as pessoas que organizavam as atividades dentro da universidade ocupada foram “aos trabalhadores”, fosse nas barricadas ou nas fábricas, e quando eles disseram para os “trabalhadores”: VOCÊS devem tomar SUAS fábricas”, eles mostravam uma completa falta de entendimento sobre o que eles já estavam fazendo nas ex-universidades.

Nas ex-universidades, a divisão entre “estudantes” e “trabalhadores” foi abolida na ação, na prática cotidiana dos ocupantes; não havia mais “tarefas de estudantes” e “tarefas de trabalhadores”. Entretanto, a ação foi mais longe que a consciência. Ao ir aos “trabalhadores” as pessoas viam os trabalhadores como um setor especializado da sociedade, eles aceitaram a divisão de trabalho. 

A escalada foi tão longe a ponto da formação de assembleias gerais de seções da população dentro das universidades ocupadas. Esses ocupantes organizaram suas próprias atividades.

Entretanto, as pessoas que “socializaram” as universidades não viram as fábricas como meios SOCIAIS de produção; elas não perceberam que essas fábricas não foram criadas pelos trabalhadores empregados lá, mas por gerações de trabalhadores.Tudo que eles viram, dado que isso é visível na superfície, é que os capitalistas não fazem a produção mas os trabalhadores fazem. Mas isso é uma ilusão. A Renault, por exemplo, não é em nenhum sentido um “produto” dos trabalhadores empregados na Renault, ele é um produto de gerações de trabalhadores (não apenas na França), incluindo mineiros, produtores de máquinas, produtores de comida, pesquisadores, engenheiros. Pensar que as fábricas automobilísticas da Renault “pertencem” às pessoas que hoje trabalham lá é uma ilusão. Porém, essa ficção foi aceita por pessoas que rejeitaram a especialização e a “propriedade” nas universidades ocupadas.  

Os “revolucionários” que transformaram as universidades em espaços públicos, e consequentemente em propriedade de ninguém, não estavam conscientes do caráter SOCIAL das fábricas. O que eles contestaram foi o “sujeito” que controlava a propriedade, o “proprietário”. A concepção dos “revolucionários” era que “os trabalhadores da Renault devem gerir as fábricas ao invés dos burocratas do estado; os trabalhadores da Citroen devem gerir a Citroen no lugar dos proprietários capitalistas”.  Em outras palavras, as propriedades privada e estatal devem ser transformadas em propriedade do grupo: a Citroen deve se tornar uma propriedade dos trabalhadores empregados na Citroen. E visto que essa “corporação” de trabalhadores não existe no vácuo, ela deve estabelecer maquinarias para se ligar a outras corporações, “externas”, de trabalhadores. Consequentemente, eles devem estabelecer uma administração, uma burocracia, que “representa” os trabalhadores de uma fábrica particular. Um elemento dessa concepção corporativista foi afetado pelo “modelo” das universidades ocupadas.Tão logo o sindicato estudantil foi rejeitado como o “porta-voz” dos estudantes que ocuparam a universidade, o sindicato tradicional (A Confederação Geral do Trabalho) foi rejeitado como o “porta-voz” dos trabalhadores incorporados: ”os trabalhadores devem ser representados não pela CGT; eles devem ser representados por eles mesmos,” quer dizer, por uma nova burocracia eleita democraticamente. 

Assim, mesmo na perspectiva dos ocupantes da universidade, as fábricas não deveriam ser socializadas. Desse modo, as “assembleias Gerais” dentro das fábricas não possuíam o mesmo significado que nas universidades. As fábricas deveriam se tornar uma propriedade de grupo, como as empresas iugoslavas. Tais empresas não são socialmente controladas; elas são geridas por burocracias dentro de cada empresa.
[...]

A ideia de que “os meios de produção pertencem aos trabalhadores” foi traduzida como significando que os trabalhadores são donos da fábrica em particular na qual eles trabalham. Essa é uma vulgarização extrema. Tal interpretação implicaria que a atividade particular à qual a luta pelo salário condenou alguém na sociedade capitalista é a atividade a que esse alguém estaria condenado quando a sociedade é transformada. E se alguém que trabalha nas fábricas de automóveis quisesse pintar, plantar, voar ou fazer pesquisa no lugar de produzir numa linha de montagem de carros? Uma revolução deveria significar que os trabalhadores, a partir desse momento, poderiam ir a toda a sociedade, e é duvidoso que muitos deles retornassem para a fábrica de carro particular que o capitalismo os tinha condenado a trabalhar."(Parte 2. Avaliação e Crítica. Limites da escalada)

O texto do livro completo está neste link: Comitês de ação dos trabalhadores e estudantes. França, maio de 68

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Brochura humanaesfera #5 - O mecanismo atrativo - extratos das obras de Charles Fourier e do Jornal L'Humanitaire


Saiu Humanaesfera #5Quinta brochura (livreto) com conteúdos deste site. Este número contém extratos das obras de Charles Fourier e também extratos da primeira publicação comunista libertária, o jornal L'Humanitaire


Neste link, está o PDF com a brochura, que consiste de 6 folhas A4 para serem impressas frente-e-verso (em impressoras que imprimem em frente-e-verso automaticamente, selecione "borda curta" ou "no sentido da borda menor", ou ainda "Frente e verso, orientação vertical"), dobradas e grampeadas no meio. Ela contém os textos:

Trechos de Charles Fourier sobre a teoria da atração apaixonada (1808-1858)

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Viva a cópia!!!



CÓPIA - do latim copia, "abundância, profusão, fartura, plenitude" . Formado de com, "junto, com, em comum", + ops (genitivo: opis), "poder, riqueza, força, recursos". Em português, copia originou as palavras copiar e cornucópia. E a raiz ops originou as palavras obra, ópera, opulento, ótimo, operário, ofício, oficina, cooperar, manobra.

Charles Fourier: “[Na civilização,] cada pessoa engajada numa indústria está em guerra com as massas, e malevolente para com elas por interesse pessoal. Um médico deseja de seus semelhantes bons casos de febres, e um advogado, bons processos em cada família. Um arquiteto necessita de um bom incêndio que reduza um quarto da cidade às cinzas, e o vidreiro deseja uma boa tempestade de granizo que quebre todas as vidraças. Um alfaiate, um sapateiro quer que o público use somente coisas mal pintadas e sapatos feitos de couro fajuto, de modo a triplicar a quantidade consumida – para o benefício do comércio; é isso que os preocupa. Uma corte de justiça considera oportuno que a França continue a cometer 120.000 crimes e danos reclamáveis, número necessário para manter as cortes criminais. É assim que na indústria civilizada cada indivíduo está em guerra proposital com as massas; é o resultado necessário da indústria anti-associativa ou de um mundo invertido. [...]

Esse círculo vicioso da indústria é tão claramente percebido que por toda parte o povo está começando a suspeitar dele e a sentir, estupefato, que, na civilização, a pobreza nasce da própria abundância. [...]

Portanto, a indústria civilizada, eu repito, só pode criar os elementos da felicidade, mas não a própria felicidade. Pelo contrário, será mostrado que o excesso de indústria leva a civilização a grandes infortúnios, se os métodos do progresso real na escala social não forem descobertos.” (Charles Fourier, Teoria dos Quatro Movimentos)
Este e outros trechos de Fourier que resumem suas ideias principais podem ser encontrados neste link: A atração apaixonada (trechos de Charles Fourier, 1808-1858)

terça-feira, 11 de abril de 2017

O antifascismo como forma de adesão ao sistema - El último de Filipinas Alacant



Trecho: "[...]Para determinar a função que o fascismo cumpre, deve-se determinar a realidade na qual ele se desenvolve, que certamente não é a mesma dos anos 30. A necessidade constante de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo levou-o a uma crise permanente. A crise do modelo keynesiano de desenvolvimento, desde princípios dos anos 70, conduz a uma paulatina superação desse modelo (do Estado de Bem-estar) e à gradual extensão de um novo (velho) modelo de liberalismo. Atualmente, ambos convivem e/ou concorrem na estrutura internacionalizada da economia de mercado. Mas essa instabilidade é suscetível de gerar graves disfuncionalidades.
A substituição de um modelo em decadência por outro em ascensão cria uma situação de precariedade e uma forte resistência em grandes camadas da sociedade. A isso se acrescenta a suposta imigração em massa como causa de disfuncionalidade adicional, fruto da internacionalização da economia e do incremento da exploração nos países da periferia, assim como a marginalização de grandes áreas geográficas do mercado-mundo.
Em resumo, eis o quadro onde se situa o fascismo. Hoje, sua missão é facilitar a transição de um modelo a outro, desenvolvendo políticas que tendem não a tomar o poder (não já...), mas a fortalecê-lo e totalizá-lo por meio de leis repressivas, anti-imigração etc., que impeçam ou neutralizem as possíveis disfuncionalidades - que se traduziriam em revoltas cíclicas ou movimentos de resistência -, conservando e mantendo formas de governo formalmente democráticos mas acentuando o papel repressivo do Estado capitalista. Portanto, o fascismo trataria de, ao mesmo tempo, direitizar e desestabilizar a sociedade, para justificar as medidas de urgência por parte do Estado. Por outro lado, é restabelecida a dicotomia democracia ou fascismo (duas caras do mesmo capitalismo), reforçando a alternativa democrática diante da possibilidade fascista, saindo vitorioso, desse falso enfrentamento, o capital.
ANTIFASCISMO HOJE
Entendendo a função do fascismo na atual estrutura das relações sociais e econômicas, podemos entender a função do antifascismo. Hoje, o antifascismo adota (querendo ou não) diversas facetas e funções:
O antifascismo como atitude estética. O antifascismo é pouco menos que uma moda. A falta de análise, debate e crítica é patente. Não globaliza o problema, mas trata de separar seus efeitos mais palpáveis (violência de rua fascista), reproduzindo-os, em muitos casos (violência de rua antifascista). Ao redor do antifascismo é criada e recriada uma estética ganguista e de escasso conteúdo, regida por uma violência boçal e estéril. Proliferam grupos, coletivos, plataformas etc., que tratam de responder a um fenômeno sem analisar suas causas ou, ao menos, sem atacá-las. Atos de repúdio ou de puro caráter anedótico, como as manifestações de 20 de novembro, são moeda comum. Mais além, deve-se situar a patética imagem do mata-nazis como figura folclórica do movimento que, em muitos casos, copia atitudes e esquemas mentais de seus supostos adversários, numa clara tendência militarista que pode chegar a prevalecer e envolver todo o movimento.
O antifascismo como luta de distração. Fixar nossos esforços na luta antifascista a nível parcial nos distancia inevitavelmente da centralidade da luta de classes: criar consciência e auto-organização de classe. O antifascismo distrai a atenção de um problema concreto, fruto de uma situação global. Ainda mais quando cai em dinâmicas de repressão-ação (difíceis de evitar), que levam o movimento a centrar seu trabalho na resposta a agressões de grupos fascistas ou do aparato repressivo do Estado, quando @s antifascistas sofrem represálias.
O antifascismo como colaboração de classe. O lema "todos contra o fascismo" pode exemplificar uma tendência para a colaboração de classes. A aliança, em plataformas etc., com forças contra-revolucionárias da esquerda capitalista é patente em muitos casos. Um lema tão geral pode ser tomado de muitos ângulos, desde a esquerda colaboracionista até a direita liberal, passando pelos grupúsculos oportunistas (os restos do leninismo, que combatem o fascismo aqui e apoiam alianças entre fascistas e "comunistas" na antiga URSS). A história volta a se repetir, com um cenário totalmente distinto, ao se desenvolverem políticas frentistas que implicam um reforço do modelo capitalista sob formas democráticas parlamentares. Volta-se a colaborar com os inimigos de classe, socavando os próprios interesses em nome de uma defesa dos inimigos aparentemente mais diretos e atrozes: os fascistas. O resultado é que, no lugar de fazer cotidianamente a revolução, nos aliamos aos inimigos dela.
O antifascismo como forma de reforçar o Estado. Os grupos antifascistas reclamam medidas estatais e legais que reprimam o fascismo 6: leis contra grupos nazis, medidas policiais, altas penas de prisão etc. A aplicação de tais medidas dificilmente nos favoreceria, muito pelo contrário. Com isso, reforça-se o papel do Estado como repressor e seu poder é fortalecido. Não deixa de surpreender e alarmar que, de nossas fileiras, sejam dadas armas para nosso mais evidente inimigo: o Estado. Assim como quem considera que as leis do Estado possam ser nossa salvaguarda contra aqueles que são nem mais nem menos que seus cúmplices: os fascistas.
PALAVRAS FINAIS
Não se pretende fazer, a partir deste artigo, uma crítica sanguinária e sem atenuantes a todos os grupos antifascistas. Não é possível pensar que esse movimento seja homogêneo e igualmente criticável, mas sim que é necessário começar a criticar, analisar e, definitivamente, pensar a realidade. Globalizar as situações para intervir na realidade e transformá-la é tarefa de tod@ revolucionari@. Do contrário podemos cair (mesmo que seja sem o desejar) no papel de cúmplices e companheir@s de viagem do próprio sistema que nos oprime. Tampouco deseja este artigo dizer que não devemos enfrentar o fascismo, mas sim esclarecer que essa luta forma parte (e não a fundamental) do enfrentamento cotidiano contra o Capital-Estado e não uma forma de justificar a existência destes."

quarta-feira, 29 de março de 2017

L'Humanitaire (1841), a primeira publicação comunista libertária (trechos selecionados)

(English version: L'Humanitaire (1841), the first libertarian communist publication (excerpts))


Traduzimos as principais partes e alguns artigos completos do jornal L'Humanitaire, publicado em 1841, em Paris [1]. O jornal exprimia a tendência denominada communistes matérialistes, também chamados communistes immédiats ou humanitaires. Foi “a primeira publicação comunista libertária”, segundo o historiador Max Nettlau. Infelizmente, devido à forte repressão que se seguiu (em que 20 envolvidos foram presos), o jornal foi descontinuado após o segundo número. [2]


Os textos dos dois números do jornal (publicados, respectivamente, em julho e agosto de 1841) defendiam: 

- a criação imediata de uma sociedade “onde toda dominação do homem pelo homem seja inteiramente abolida”; 

- a abolição das fronteiras nacionais (obs.: a palavra humanitaire, humanitário, não existia no dicionário. Era então um neologismo para se referir à ideia de comunidade humana mundial, ao universalismo, internacionalismo, cosmopolitismo etc, ou seja, tinha um sentido diferente de hoje, que se restringe à filantropia estatal, bélica ou burguesa [3]);

- a abolição da coerção ao trabalho, assim como da divisão do trabalho, através da instauração do trabalho atrativo (ideia inspirada em Charles Fourier), numa situação em que os seres humanos viajariam livre e continuamente pelo mundo, deixando “livre curso ao desenvolvimento da fraternidade ao livrar o homem do contato perpétuo com os mesmos seres, o que engendra o apego individual que é positivamente a negação da lei da atração, una e universal” e em que ninguém faria o mesmo trabalho por mais de um dia. E

- coerentemente com a superação da divisão do trabalho, a abolição tanto da venda quanto da troca, numa sociedade que se organiza em função da livre satisfação de todas as necessidades humanas e do livre desenvolvimento de todas as faculdades.

O jornal causou escândalo, sendo fortemente criticado e combatido pelas demais tendências socialistas de então, como os icarianos (seguidores de Étienne Cabet, defensor de um comunismo cristão 
autoritário, pacifista, a-classista,  autor da utopia Viagem à Icária, e fundador do jornal Le Populaire) e os socialistas reformistas com tendências espiritualistas e nacionalistas (como os jornais L´Atelier, Le Travail e La Fraternité) [4]. 
Gabriel Charavay, em 1878

Os redatores de L'Humanitaire eram: Gabriel Charavay (camiseiro, depois jornalista iniciante e livreiro), Jean Joseph May (agrônomo), Julien Gaillard (encanador), Pierre Antoine Nicolas Page (joalheiro). Sabemos os nomes dos outros participantes por causa da forte repressão policial que se abateu sobre eles: a feminista Louise Dauriat, os camiseiros Jean Charavay e Donatien Dauvergne, os joalheiros Anselme Mugnier e Augustin Noël, os tipógrafos François Garde e Claude Chassard, os sapateiros Antoine Fombertaux e Jean Sans, o telhadista Désiré Gaillard, os alfaiates Alexis Trottier e Théodore Ber, o contador Corneille Homberg, o pedreiro Silvain Mourlon, o marceneiro Quéré, o curtidor Auguste Sauvaitre, o secretário de negócios Hyppolite Loudier e o vendedor de vinhos Etienne Rousseau [5]. 

Muitos temas que apareceram em L'Humanitaire, como o das viagens contínuas, reapareceram amplamente desenvolvidos depois, em 1857, em A Humanisfera - utopia anárquica, de Joseph Déjacque. Também em Karl Marx, especialmente em A Ideologia Alemã, de 1846 e nos Manuscritos de Paris, de 1844. Por exemplo, a questão da superação da divisão do trabalho por uma livre associação de indivíduos em escala mundial, culminando no tema da abolição do trabalho em si. Nessas obras de Marx, há inclusive frases que parecem quase que transcritas de L'Humanitaire, por exemplo: “O que é a vida senão atividade?” No entanto, não há provas de que eles tenham lido o jornal. É possível que tenham sido influenciados através do contato direto com as ideias circulantes no meio proletário parisiense da década de 1840, ou que tenham desenvolvidos essas ideia por si mesmos, uma vez que os problemas concretos que levam a tratar dessas questões são comuns aos proletários do mundo inteiro, inclusive hoje.

O jornal também publicou uma biografia de  Sylvain Maréchal (que não traduzimos), com quem se identificavam por suas ideias "anti-políticas ou anarquistas".

Aliás, um dos redatores de L'HumanitaireJean Joseph May, é citado pelo espião Lucien de La Hodde, que relatou: “O Sr. Jean Joseph May, que está morto – o Deus da comunidade guarde a sua alma! – não era um homem ordinário, visto que o Sr. Proudhon se dignou a tomar suas ideias. O famoso sistema de governo an-árquico, isto é, do governo sem governantes nem governados, não é nem mais nem menos que a propriedade do falecido Sr. May” [6].

humanaesfera, março de 2017

Notas:
[1] Os dois números de L'Humanitaire em francês podem ser acessado neste link da Gallica da Biblioteca Nacional da França. 
[2] Prehistory of the Idea - Nick Heath



L'HUMANITAIRE, 
 Organe de la Science Sociale 
(trechos seletos)

Abaixo, por razões de espaço, selecionamos apenas alguns trechos, organizados por temas, de nossa tradução mais completa, que publicamos neste link.


[FACULDADES HUMANAS, RAZÃO E UTILIDADE]

"O desenvolvimento completo de todas as faculdades humanas será a garantia da utilidade (*) de todos os seus atos. Assim, o mal, ou seja, o ato pelo qual o homem é nocivo a si mesmo, ou nocivo a um ser de sua espécie, deve se tornar impossível em uma organização social baseada na natureza humana. [...]  Do desenvolvimento completo das faculdades deve resultar a razão, ou o conhecimento exato, preciso, do útil e do nocivo [...]Alguém nos dirá: “não é verdade, portanto, que o homem é mau, já que pretendeis lhe retirar até mesmo a possibilidade de fazer mal?” Não, certamente que não, os homens não são maus; eles são tolos e ignorantes. Uma ordem social em evidente oposição às leis eternas da matéria e às necessidades da natureza humana falsificou todos os nossos conhecimentos, obstruiu o desenvolvimento da ciência e impeliu o homem, ignorante e embrutecido, a cometer atos nocivos à sua conservação. Para remediar o mal, é preciso desenvolver no homem essa faculdade preciosa que ele recebeu da natureza, a razão, fazer dela a medida da satisfação de suas necessidades materiais, uma vez que ela é a única regra que ele pode consultar em cada um de seus atos. Com esse desenvolvimento da razão, se retira do homem toda possibilidade de fazer o mal, pois seria odiosamente absurdo pretender que um homem sensato, que não age nunca fora da razão, possa ser nocivo a si mesmo.

[(*) {Nota de L'Humanitaire:} "Entendemos por esta palavra {utilidade} tudo aquilo que contribui à saúde, à conservação e, portanto, à felicidade do homem; nós chamamos de nocivo tudo que é o contrário disso."]

[...]

Após estudar e pesquisar por muito tempo a solução de todos esses problemas, adquirimos a certeza de que a situação igualitária pode, sozinha, resolver todos eles; nosso jornal provará isso de uma maneira evidente e irrefutável.

A consequência primeira desse princípio sendo a unidade, a indivisibilidade não pode admitir nenhuma divisão, nenhum particionamento do solo. Queremos portanto a comunidade de bens.


[ALGUMAS CRÍTICAS Á L'HUMANITAIRE]

Mas que tempestade de recriminações e objeções essas duas palavras, igualdade e comunidade, não levantam?! “A igualdade, lei absoluta, não existe em lugar nenhum. Sua realização será a negação do ser intelectual e moral! Será a destruição da ciência e das artes, o retorno ao embrutecimento e ao estado selvagem! E a atividade, essa nobre e preciosa faculdade do homem, é aniquilada pela igualdade! E que langor, que monotonia, que coerção na comunidade de bens! Além disso, quanta dissidência entre os comunistas! Cada um entende a comunidade à sua maneira! De onde vem essa falta de unidade? Por que então esse novo jornal comunista, quando já existem dois em Paris?


[FACULDADES INTELECTUAIS E MORAIS]

Os fisiologistas reconhecem no homem três naturezas bem distintas, em outros termos, três ordens de fatos. Há três tipos de necessidade: as necessidades físicas, as necessidades intelectuais e as necessidades morais. Longe de querer contestar essa trindade do organismo humano, de cuja existência estamos perfeitamente convencidos, o que afirmamos é que a sociedade deve satisfazer por inteiro todas as necessidades humanas. Assim, visto que reconhecemos no homem as necessidades intelectuais e morais, cuja satisfação, para nós, é tão imperiosa quanto as necessidades físicas, então estamos longe de querer aniquilar o ser intelectual e moral. Nós demostraremos, pelo contrário, que a organização igualitária permite por si só o desenvolvimento completo de todas as faculdades humanas. Essa é, além do mais, a consequência implicada na fórmula que usamos para anunciar o problema social. De fato, ao colocar como princípio que o objetivo da ciência social é garantir a conservação da espécie humana, com isso implicamos também que ela deve garantir ao homem o desenvolvimento de todas as suas faculdades intelectuais, visto que só esta última indica os meios para chegar a esse objetivo. Desse modo, está aniquilada essa objeção tola de que a igualdade é a negação do ser intelectual.

Assim, cai também aquela outra objeção segundo a qual a lei igualitária destruiria a ciência e as artes.


[ATIVIDADE HUMANA, ATRAÇÃO, UTILIDADE]

Mas a igualdade esmaga, sufoca e aniquila a atividade humana.” Ah! Se fosse assim, nós seríamos bem criminosos, e a igualdade seria uma lei horrivelmente atroz! Mas sabemos que viver é ser ativo. Longe então de querer negar no homem essa necessidade de conhecer, de raciocinar, de agir, e, consequentes com o princípio que expomos, queremos que essa necessidade tenha uma satisfação completa. Provaremos que a situação igualitária pode garantir por si só essa satisfação. Mas não basta que a atividade humana tenha uma satisfação completa para que tudo possa ser melhor quanto a isso. A ciência social, que busca todos os meios que são úteis à humanidade, deve também encontrar o de atrair sem cessar essa faculdade aos objetos úteis, ao invés de deixá-la se perder na aberração ou em futilidades. Cremos que atingir esse resultado é chegar ao último termo da perfectibilidade.


[A QUESTÃO DO LANGOR, DA MONOTONIA E DA COERÇÃO]

Quanto à acusação de monotonia, de langor, que se dirige à comunidade, ela só pode ser feita por quem não tem nenhuma ideia da organização comunista. Veja, com efeito, como essa organização é monótona! O homem, sob esse regime, fará apenas quatro ou cinco vezes a volta ao mundo. A organização do trabalho, ordenada de acordo com o princípio de comunidade, não é menos acomodatícia; nunca, nessa ordem social, alguém ficará ligado por mais de um dia ao mesmo trabalho. Que langor, portanto, nesse estado de coisas onde o homem viajará continuamente. E isso, com o objetivo de operar a mistura a mais íntima da raça humana; de estimular sem cessar sua atividade ao lhe oferecer sempre fatos novos a estudar; de deixar livre curso ao desenvolvimento da fraternidade ao livrar o homem do contato perpétuo com os mesmos seres, o que engendra o apego individual que é positivamente a negação da lei da atração, una e universal. Ó sim! Em uma organização social combinada assim deve existir uma monotonia e um langor insuportáveis. Leitores, não penseis que tudo isso seja um sonho, nós provaremos que é uma realidade.

Após isso que foi dito, cremos ser inútil responder a essa outra objeção: a comunidade impõe ao homem uma coerção insuportável. Certamente, nenhum daqueles que nos fazem essa objeção leva mais alto do que nós o amor pela liberdade. Todos eles ficariam muito embaraçados se pedíssemos a eles o plano de uma organização social onde toda dominação do homem pelo homem seja inteiramente abolida: nós daremos esse plano neste jornal.


[SOBRE AS DISSIDÊNCIAS]

Enfim, responderemos à terceira e última objeção: “os comunistas são divididos; cada um entende a comunidade à sua maneira”. Respondemos: isso é verdade. Mas qual a causa principal das dissidências? Não é preciso procurar por muito tempo; ela se encontra na ausência de uma obra que formule a doutrina de um modo claro e completo. Todas as que foram publicadas até hoje não atingiram o objetivo que propuseram. As obras antigas, bem como as novas, seja por ignorância de seus autores, ou por medo de ferir alguns preconceitos, estão cheias de ideias falsas, de inconsequências e contradições, que, ao invés de reunir, só fazem dividir. Assim, uma obra, ou uma publicação, que exponha claramente e contundentemente a organização comunista é indispensável para restabelecer a unidade na doutrina, e entre os homens que a professam. Nó viemos para realizar essa tarefa. Que não nos acusem de vir para semear a cizânia, buscar e querer a desunião. Todos os nossos esforços tenderão, ao contrário, à reunir os homens de boa fé sob a bandeira da verdade. Somos profundamente convencidos de que a verdade é o mais poderoso elo para reunir os homens, assim como somos igualmente convencidos de que o erro e a mentira são causas eternas de divisão. Não recuaremos nunca diante da verdade, e nos engalfinharemos com os preconceitos que nos impedem de chegar à ela. Guerra mortal a todos os erros, a todos os preconceitos! A mentira já treme ao aspecto da verdade que avança: viva a verdade!(L'Humanitaire, Nº 1)


[LIBERDADE E TIRANIA]

"Dirão que retirando assim do homem a possibilidade de fazer o mal, nós aniquilamos o eu, assassinamos a liberdade humana, constituindo uma tirania de tipo novo, mas não menos odiosa que a que existia? Já declaramos que ninguém é amigo mais ardente da liberdade do que nós, que ninguém abomina mais todas as tiranias; se a objeção fosse verdadeira, nossa doutrina estaria em contradição com a declaração que fizemos. Examinemo-la. Primeiramente, o que é liberdade? O que é a tirania? A liberdade é uma situação em que o homem não obedece a nenhuma autoridade que não a razão; a tirania é o oposto, ou uma situação em que ele é forçado a cometer atos outros que aquele que sua razão lhe dita. O que é então a razão? É a ciência, ou o conhecimento do que é útil e do que é nocivo. Ora, esse conhecimento é fácil de adquirir. Admitindo que o erro tome o lugar da verdade, ele não poderá durar muito; os fatos virão prontamente para desmascará-lo. Portanto, não há tirania na nossa organização, porque o homem não obedece a qualquer autoridade que não a razão; ela por si só possui todas as condições da verdadeira liberdade." (Sobre a ciência social, L'Humanitaire, Nº 2)


[FAMÍLIA, VENDA E TROCA]

"Perguntais [o jornal L´Atelier] se nós entendemos ´por comunidade, essa vida mais íntima onde, no que respeita ao casamento e à família, alguém se associa voluntariamente tanto por necessidade de economia quanto por sentimento de fraternidade, e onde todos os meios de existência seriam comuns´. Nós respondemos que não é assim que entendemos a comunidade, cuja organização, além do mais, não tem nenhuma relação com a associação que nos apresentais. A julgar por essa associação que vosso jornal apresenta, nós estamos muito distantes de vós. [...] Ora, se entre dois homens se encontra um mais forte que um outro, que produz menos, e que, entretanto, tem tantas necessidades quanto aquele (o que não chega a ser tão incomum), então o menos forte será mais infeliz. Mas esse ainda não é o melhor lado da medalha. Suponhamos (o que não é impossível) que o fraco tenha, diferente do forte, uma família a alimentar com o módico trabalho de seus braços. No que se torna a vossa pretensa comunidade de meios de existência? Não é ela uma piada amarga? Uma piada atroz? E isso não é também exatamente a ordem de coisas atual que mudais apenas o nome? Não faleis então de fraternidade, pois ela não faria nenhum sentido em uma associação semelhante.


Quanto ao sistema de venda, não mais que aquele de troca que quereis substituir e que consideramos como uma engrenagem igualmente inútil, eles não figuram nem um pouco na nossa teoria. Cada comuna será suprida abundantemente, pelas vias de transporte, sem a intervenção de vendedores, nem trocadores, dos objetos necessários a todos os seus membros. Basta que a necessidade seja revelada por cada uma para ser satisfeita instantaneamente e com as mesmas condições.

[AS MÁQUINAS, OS PREGUIÇOSOS E A ATIVIDADE HUMANA]

Até agora, estaríeis [o jornal L´Atelier] de acordo conosco, se nós abundássemos no vosso sentido, mas vós vos apiedais se nossas ideias de comunidade forem mais longe; se nós sonharmos ´com essa era de ouro onde o trabalho não passa de uma agradável distração, onde os frutos da terra são tão numerosos que não se poderá recusar inclusive ao preguiçoso que se sente no banquete´. Então, apiedai-vos à vontade, pois a era de ouro que pintastes como um erro é o objetivo constante a que tendemos. Sim, o trabalho, para o homem, não passará de uma agradável distração. E se não tivesse que ser assim, o que significam então essas máquinas que fazem, sozinhas, o trabalho de uma grande quantidade de braços? Por que se inventaria essa multidão inumerável de mecanismos, uns mais engenhosos do que outros, se não fosse para centuplicar o produto do trabalho, abreviar sua duração, e torná-lo atraente suprimindo o que é penoso? Não perguntaremos se sois contra as mecânicas, isso seria vos fazer injúria, pois sabeis tanto quanto nós que, se elas são hoje um grande mal, elas serão um grande bem quando a sociedade for organizada tal como deve ser, e o homem não precisar mais do que conduzi-las e descobrir novas. Mas então queremos saber por que sois tão excitados em favor da reforma industrial? Seguramente não é para deixar o trabalho tão desagradável quanto já é hoje em dia, nem para torná-lo pior.

A palavra preguiçoso não terá nenhum significado na língua da comunidade, assim como ela já não tem na língua atual. O homem é um ser essencialmente ativo; ele tem uma soma de atividade a exprimir; o objetivo da ciência social é dar a essa atividade uma direção boa e não má; útil e não nociva, nem inútil. Hoje ocorre o contrário. Os indivíduos exercem sua atividade em pura perda, em coisas fúteis, insignificantes, de resultados estéreis. Por quê? Porque foram dados maus exemplos de atividades, porque elas são mal direcionadas, porque, enfim, elas se encontram em um meio social vicioso, ao invés de um meio social bom, um meio em que não se teria que fazer e nem se teria visto fazerem senão coisas úteis, e que nada poderia extraviá-las. Desse modo, as palavras preguiça, vagabundagem e ociosidade são vazias de sentido, a menos que se negue o movimento incessante que se manifesta na natureza e, por consequência, no homem, que não é senão uma maneira de ser dessa natureza. Logo, não existem preguiçosos, vagabundos e nem ociosos, mas seres ativos que os vícios da organização social fazem com que se consumam em atos inúteis, e que uma boa sociedade os deixaria se exprimirem em atos úteis.(Resposta ao jornal L´Atelier, publicado em duas partes, nos números 1 e 2 de L'Humanitaire)

[UMA CRÍTICA DO JORNAL LA FRATERNITÉ AO  L'HUMANITAIRE]

Apesar de suas boas intensões”, diz [o jornal La Fraternité], “os redatores desse jornal [L'Humanitaire] concluem diretamente contra os princípios da igualdade, da liberdade e da fraternidade que eles querem, como nós, propagar.

Se cada homem consiste no organismo material, como pretende o jornal, esse organismo deve ser tomado como medida do homem e marcar seu lugar entre seus semelhantes. Ora, vemos os homens divididos em grandes e pequenos, em fortes e fracos, materialmente falando. E se tomarmos as demonstrações palpáveis e visíveis que L'Humanitaire crê serem as únicas demonstrações rigorosas, então os homens são desiguais entre si.

´Com que direito´, o gigante e o atleta questionarão, ´quereis nos fazer crer que estamos no mesmo nível do anão e do doente, nos rebaixando a sua pequenez e fragilidade, uma vez que a natureza visível fez de nós seres grandes e fortes? Nós fomos criados para ser senhores, e eles, escravos. É a lei de nosso organismo.´

L'Humanitaire não poderá contradizê-los, visto que o organismo é sua regra.

Porém, L'Humanitaire , cheio de boas intenções, provavelmente responderá: ´a fraternidade quer que façais, em favor dos frágeis e pequenos, o sacrifício de vossa grandeza e de vossa força´.

O que dizer? Deixemos o gigante e o atleta responderem: ´não nos ensinais que o único motor das ações humanas é a utilidade? Ora, seria útil para nós nos sacrificar em benefício dos mais fracos do que nós? O que receberíamos em troca disso que daríamos a eles? O que é fraternidade? Os homens não são mais irmãos entre si do que são irmãos das árvores e das pedras. Assim como as árvores e as pedras, o homem é uma agregação de moléculas materiais, e tudo que não é ele, tudo que está fora de seu organismo, separado de seu corpo, é estranho para ele. O homem corta as pedras e come as frutas. Ele pode, do mesmo modo, sem escrúpulos, explorar os seres com rosto humano que estão à sua volta. E não digais que nossas necessidades morais não estariam satisfeitas quando tornarmos infelizes aqueles que vós chamais de semelhantes. Nossa moral é, repetimos convosco, a utilidade, e se nos for útil comer os homens, nós comeremos.´

L'Humanitaire, assustado com essa linguagem, tentará murmurar ainda: ´mas o homem é um ser fatalmente social´. Se vós assumis a fatalidade como princípio, ouçamos novamente esses homens fortes e vigorosos que nós supomos que deixais à vontade: ´a fatalidade quer que dominemos, pilhemos, queimemos, devoremos, e se somos os mais fortes, a nossa própria força é uma prova de nosso direito. Se fazemos, com isso, coisas que vos desagradam, não nos culpais, nós não somos livres, mas instrumentos da fatalidade.´

Essas poucas linhas indicam algumas das tristes consequências do sistema materialista, utilitário e fatal em que L'Humanitaire  se baseia.”

[RESPOSTA DE L'HUMANITAIRE AO JORNAL LA FRATERNITÉ]

“O que significam esse gigante e esse atleta? Os atos que vós os fazeis cometer tem alguma relação com aqueles do homem razoável? De um homem que tem o mínimo de bom senso? Eles têm todas as características do selvagem esfomeado, ou de um louco delirante. Como vós vos deixais acompanhar de seres tão singulares? E aonde pretendeis conduzi-los? Se não para casinhas, é certamente para uma selva. Como não somos nada desejosos de nos acompanhar com gente que entende tão pouco de brincadeiras, e nem de ir a um país que, a julgar por seus habitantes, deve ser mais perigoso do que recreativo, vos deixaremos partirdes sozinhos, e apenas pediremos de vós uma descrição quando retornarem. Quanto a nós, nos transportaremos, por um momento, para a sociedade futura, da qual nós desenvolvemos a teoria, e ali colocaremos o gigante, o atleta, o anão e o doente, aos quais devolvemos a razão que tínheis retirado deles tão impropriamente. Vejamos se nós não seremos mais felizes do que vós na nossa observação, e se nós não obteremos melhores resultados. Primeiramente, devemos notar que os quatro homens, cujas faculdades receberam um desenvolvimento completo, são perfeitamente iguais, não iguais em altura e em força, mas iguais quanto à satisfação de suas necessidades e no exercício de suas faculdades, pois cada um consome segundo os seus apetites, e trabalha segundo as suas forças. Estando igualmente satisfeitos os órgãos tanto dos fortes quanto dos fracos, segue-se a mais perfeita igualdade na satisfação normal dos órgãos de cada um. Logo, nossos quatro personagens são consequentemente iguais sem serem igualmente altos nem igualmente fortes entre si. Portanto, eles são livres sem presumir que a natureza teria criado uns senhores e outros escravos. Eles praticam a fraternidade no sentido mais amplo da palavra. E ainda que eles saibam que “assim como as árvores, o homem é uma agregação de moléculas materiais”, não lhes ocorre a ideia de fratenizar com as árvores e as pedras, e por mais tolos que se suponha que sejam, eles reconhecem as funções, as relações, as propriedades específicas dos diferentes modos de ser da natureza. Eles não confundem o reino mineral ou o reino vegetal com o reino animal. Em cada um desses três reinos, eles descobrem também diferentes maneiras de ser. [...]

[RESPOSTA À CRÍTICA DE LA FRATERNITÉ À IDEIA DE VIAGENS CONTÍNUAS PELO PLANETA]

Ele [o jornal La Fraternité] não quer que desejemos ´uma era em que o homem viajará continuamente para operar a mais íntima mistura da raça humana´. Depois do que, La Fraternité acrescenta: ´O que é essa pretensa mistura senão a promiscuidade mais brutal, a mais luxuriante negação da família! O que é uma viagem perpétua que deve livrar o homem do contato diário com os mesmos seres senão a negação da fraternidade, que L'Humanitaire  invoca, e a realização dessa lamentável balada do judeu errante, que nos representa a apavorante tristeza de um homem condenado a correr eternamente pelo mundo, sem poder pousar sua cabeça sob um teto amigo, apertar a mão de um irmão, nem descansar das fadigas da vida no seio de uma família querida! Quem de nós, ao ouvir em sua infância essa estória lúgubre, não choraria pelo isolamento desse viajante forçado, que atravessa as eras como se atravessasse um vasto deserto?! Quem não se lamentaria de não ter nenhuma companhia nem um amigo?! E é essa balada, a mais desoladora idealização do isolamento no qual os homens tem passado até nossos dias, que L'Humanitaire quer nos fazer considerar como modelo de felicidade e perfeição.´

Há nessa passagem muita poesia, alguns termos cuja aplicação é pouco fraternal e, sobretudo, ignorância completa de nossa doutrina. O que significam essas palavras: a promiscuidade mais brutal, a mais luxuriante negação da família, senão que o jornal La Fraternité inventa ele próprio monstros para se dar o prazer de combater? [...]

O jornal a que estamos respondendo pretende que as viagens contínuas, que tem por objetivo preservar o homem do contato perpétuo dos mesmos seres, são a negação da fraternidade. Se tivesse lido a frase completa de L'Humanitaire, teria visto que, longe de destruir a fraternidade, as viagens a consagram em toda a sua plenitude, tornando impossível o apego individual que é positivamente a negação da lei da atração uma e universal.

[...] Não aceitando as viagens contínuas, vós particionais o princípio [de fraternidade] e, sem se darem conta, vós os dividis em muitas partes: fraternidade doméstica, fraternidade da cidade, fraternidade de todos os homens, o que o reduz a quase nada quando se passa por todas essas etapas. A fraternidade não tem graus, não mais do que a unidade, ela não pode ser separada de si própria. Assim, onde quer que se pratique esse princípio, não percebeis a possibilidade de que o judeu errante repouse sua cabeça sob um teto amigo, aperte a mão de um irmão? Perceba que fazeis o judeu errante não se sair melhor do que o gigante e o atleta. Então, deixai em paz esses seres singulares.(Resposta ao jornal La Fraternité, L'Humanitaire, Nº 2)

Tradução do francês por humanaesfera, a partir da versão disponibilizada pela biblioteca digital Gallica, da Biblioteca Nacional da França.

Estes são apenas trechos seletos, para a tradução mais completa, ver: 
L'Humanitaire (1841), a primeira publicação comunista libertária (tradução ampla).



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