BICHO MAU Nº 0


(Agradecemos a Ulisses pelo envio desta publicação histórica)

Também publicamos anteriormente o conteúdo do BICHO MAU Nº1.



BICHO MAU nº0 
(informativo libertário - segunda metade de 1984)

[imagens: Capa (página 1)Página 2Página 3 e Página 4]



QUEM SOMOS?

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Somos um grupo que une pessoas de estórias, origens sociais e perspectivas diferenciadas, mas que tem em comum o compromisso de lutar por uma sociedade sem exploração e opressão, autogerida por todos os seus membros através de comissões de delegados eleitos e controlados pela base, permanentemente revogáveis.

Acreditamos que o único caminho que possibilita este tipo de sociedade é aquele que passa pela ação direta, autônoma e auto-organizada de todos os explorados e oprimidos. Por ação direta nós estamos entendendo toda luta ou movimento que é controlado e dirigido pelos próprios interessados, sem intermediários.

Em função disto, recusamos e combatemos qualquer perspectiva de atuação que envolva instituições e práticas de representação e delegação permanente de poderes em políticos, especialistas e burocratas vinculados à partidos políticos, sindicatos burocratizados, parlamentos e demais aparatos de dominação.
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O QUE QUEREMOS?

Queremos contribuir, dentro de nossas possibilidades, para que a revolução - necessariamente internacional - que instaurará o socialismo autogestionário se realize da forma mais ampla, profunda e rápida possível.

Para tanto, excluímos qualquer intenção de dirigir as massas ou de levar a estas uma consciência supostamente revolucionária. Ao contrário, queremos, através deste jornal e de outras formas de intervenção, ajudar e incentivar todas as lutas e movimentos autônomos e auto-organizados, divulgando-os, analisando-os e, sempre que possível, dando voz aos próprios trabalhadores em luta.

Paralelamente, procuraremos analisar e denunciar a dinâmica e as contradições do sistema capitalista - privado e estatal (dito "socialista"), as estratégias das classes dominantes — burguesa e tecnocrática — e suas formas de dominação e integração — ditatoriais e antidemocráticas, sejam elas realizadas pelas direitas ou pelas esquerdas autoritárias.

QUEM É BICHO MAU?

Bicho mau, na ótica das classes dominantes, são os trabalhadores, o povo em geral. Este povo supostamente inculto, cordial e manipulável. Mas igualmente perigoso, pois — se não for devidamente controlado — pode, a qualquer momento, virar a mesa onde se banqueteiam há muito tempo os patrões, os políticos, os tecnocratas, os militares e demais parasitas. Para que este Bicho Mau fique realmente à solta, para que ele descubra por si mesmo sua própria força, para que ele se auto-eduque na e pela luta, é para isso que estamos aqui. Viemos para ficar!


O REGIME MILITAR E SEUS HERDEIROS

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Impossibilitados de armar o grande circo das eleições diretas, a oposição burguesa vai mesmo é de Colégio Eleitoral. A eleição direta até que tinha suas vantagens: um governo legitimado pelas urnas se sentiria em melhores condições de exigir que os trabalhadores apertassem os cintos do que um governo oriundo de um Colégio Eleitoral. Mas a oposição - com exceção, até o momento, do PT — logo percebeu que as indiretas também têm seus méritos: menor necessidade em assumir compromissos de mudanças com o povo nas ruas; não se precisa mobilizar tanto o povo assim, correndo o risco de perder o controle sobre ele. E, finalmente, tudo isso torna o candidato da oposição (?) muito mais aceitável aos militares e patrões, garantindo uma transição tranquila da dominação burguesa ditatorial para a dominação burguesa democrática. Que, diga-se de passagem, é muito mais adequada para os novos tempos de crise.

Mas, afinal, qual é a grande diferença entre os dois candidatos oficiais, Maluf e Tancredo? Muito pouca, pois o que todos os dois querem é gerir e salvar o capitalismo brasileiro da crise. Maluf, um pouco mais comprometido com as empresas privadas nacionais multinacionais e os gestores militares; Tancredo, por sua vez, um pouco mais comprometido — mas não muito — com o setor estatal, o mercado interno e os gestores civis. A grande diferença é que Tancredo tem muito mais experiência que Maluf em manter a ordem, garantir a exploração dos trabalhadores e conseguir algum apoio popular (com ajuda dos partidos de esquerda, ávidos por algumas migalhas de poder). Por isso que Tancredo é o grande candidato das ciasses dominantes brasileiras, do capital internacional e do próprio FMI.  Este já declarou preferir Tancredo ao candidato do PDS, pois Maluf, para conseguir o apoio popular que não possui, poderia tomar medidas demagógicas. O que não é o caso de Tancredo...
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Maluf e Tancredo são os herdeiros do regime militar. Maluf é o herdeiro "oficial" do regime. É o Estado capitalista brasileiro sem máscaras, descaradamente autoritário, corrupto e anti-operário. Já Tancredo, se não é o candidato "oficial", é o candidato legitimo da ditadura. Tancredo é o regime militar com roupagem populista, conciliatória e liberal. Mas nem por isso menos autoritário e anti-operário. Afinal. Tancredo não pretende acabar com o SNI, a Lei de Segurança Nacional e demais instituições da ditadura.

Tanto Maluf quanto Tancredo representam duas vias — não muito diferentes — de realizar a dominação e exploração capitalista no Brasil. Os trabalhadores nunca modificarão sua situação optando por apoiar a tendência capitalista que seria a "menos pior". Os trabalhadores só farão valer seus interesses na medida em que se diferenciarem de todas as opções capitalistas criando seu próprio terreno de ação: aquele da ação direta e das organizações criadas e dirigidas pelos trabalhadores nos locais de trabalho e moradia. É o caminho apontado por lutas como a dos boias-frias de Bebedouro, das greves com ocupação de fábrica pelos operários da Companhia Siderúrgica Nacional, da COSIPA, Villares, e muitos outros exemplos.

Em outras palavras, não se trata de trocar Tancredo por Brizola ou mesmo Lula, de mudar indireta por direta. Seja qual for o candidato, seja qual for o sistema eleitoral, a exploração e opressão dos trabalhadores nas fábricas, fazendas e empresas não vai terminar. O fim da exploração só será alcançado pela ação direta e organizada dos trabalhadores. E ponto final. 

NEM MALUF E NEM TANCREDO:  AÇÃO DIRETA NA CABEÇA!


MINEIROS DA INGLATERRA EM GREVE

As minas de carvão da Grã-Bretanha estão silenciosas. Há mais de 40 semanas os cavadores deixaram da ir as suas profundidades, é greve longa e importante. Não se reivindica aumento de salário, nem melhores condições de segurança ou higiene. Pretende-se, por absurdo que pareça, o direito de trabalhar e produzir.

As velhas minas se tornaram economicamente deficitárias. Ao capitalismo selvagem só interessam lucros e mais lucros. Thatcher quer o fechamento e a importação de carvão, acarretando com isso desemprego imediato do 180.000 trabalhadores e o reflexo brutal sobre suas famílias.

Os grevistas dizem não à solução tecnocrática. E lutam valentemente. Não estão sozinhos na briga. Contam com a solidariedade internacional. Uma falsa, representada pelos países da cortina de ferro. Enquanto filhos de mineiros são levados à União Soviética para gozo de férias, a Polônia exporta toneladas de carvão para a Grã-Bretanha aniquilando a luta operária. A solidariedade autêntica tem como exemplo os anarco-sindicalistas — CNT espanhola e francesa, OVB holandesa, FAU alemã, IWW americana, RWG australiana, etc. E apoio sobretudo financeiro. Passa por intermédio do Movimento de Ação Direta, secção da AIT, de organização operária para organização operaria. Solidariedade de classe autêntica e não demagogia do Estado do socialismo real.

A participação solidária dos habitantes das pequenas cidades onde se localizam as minas é efetiva. Em destaque as mulheres envolvidas na arrecadação de fundos, distribuição de sopas populares - principalmente dos piquetes grevistas. Até um congresso nacional de mulheres, reunindo cinquenta delegadas, para protestar contra o fechamento das minas.

Os desempregados do país que atingem a cifra de 3.200.000 tem prestado apoio. Em Casilemink o grupo anarquista de Clydeside, ocupou a bolsa marítima de Glasgow com o objetivo de apoiar os operários do carvão. Os grupos libertários têm se mostrado ativos sobretudo na arrecadação de fundos.

A nível de direção sindical as reivindicações atingem aspectos políticos e econômicos. Há uma proposta de definir uma politica energética oposta a de Thatcher. O TUC (Trade Union Congress) tem um programa que prevê a parada do investimento nuclear, por este ser perigoso e dispendioso. Diminuição progressiva da importação de petróleo e gás por serem de alto custo, desenvolvimento de energias não poluidoras e economia de energia. A indústria do carvão deixará de ser a base da indústria britânica e por isso mesmo não precisará ser lucrativa

Um dos aspectos importante do desenrolar do movimento grevista é a tomada de consciência por vasto setor da população do significado do Estado policial. A repressão que o próprio Estado está levando a cabo é de uma violência inaudita e tem chocado até as pessoas que por suas funções profissionais e tendências agressivas estariam mais propensas a admitir tal espécie de repressão. Uma campanha contra o Estado policial e a justiça de classe, faz com que os mineiros não aceitem qualquer julgamento jurídico de suas lutas.

Neste momento, a luta continua arduamente, até a vitória final dos mineiros ingleses.


PARTIDO DOS TRABALHADORES

Existe uma organização politica que curiosamente se auto-intitula "Partido dos Trabalhadores". Este partido se pretende muito radical ao se apresentar como o único que, no momento, se mantém fiel á proposta de eleições diretas já. Ora. neste aparente radicalismo, o PT, na realidade, se torna o único partido consequentemente burguês do Brasil. É verdade que todos os partidos — por serem partidos — são burgueses. Mas é o PT o único que, no momento, teima pela instauração de uma democracia burguesa no pafs, ou seja, no níveis, nas instituições e práticas de representação e delegação de poder.

Contra a palavra de ordem das oposições burguesas "moderadas" - 'Tancredo já para mudar!", o "radical" PT contrapõe "pra mudar, o povo precisa votar". Vejam em que ponto chegou um partido que se pretende dos trabalhadores! Será que esses candidatos à burocratas ainda não aprenderam que os trabalhadores nunca conseguiram mudança através do voto. Na verdade, para mudar, o que o povo precisa é lutar!

TRABALHADOR UNIDO NÂO PRECISA DE PARTIDO!


PARA NÃO ESQUECER

Há cinquenta anos, em outubro de 1934, estourava uma insurreição proletária na região espanhola de Astúrias, esta insurreição foi precedida por uma greve geral revolucionária que atingiu quase todo o território espanhol. Rápida e duramente reprimido, o movimento revolucionário só conseguiu se consolidar na região de Astúrias onde os mineiros chegaram a dominar toda a região, incluindo a capital Oviedo. Isolada, a coluna de Astúrias foi reprimida a ferro e fogo pelo exército que, como sempre, cumpriu sua missão de reprimir e matar trabalhadores revolucionários. A insurreição de Astúrias antecedeu e, de certa forma, preparou a revolução e guerra civil espanhola de 1936 e merece ser sempre lembrada por todos os trabalhadores e revolucionários.


BOIAS-FRIAS APONTAM O CAMINHO

Para entender a revolta dos boias-frias da região de Ribeirão Preto (S.P.),  ocorrida em maio de 1984, é preciso situá-la com relação às formas pelas quais o Capital penetrou e se implantou no campo brasileiro. Nos últimos 20 anos esta penetração e implantação se deu da forma mais selvagem possível. Os camponeses brasileiros, que nunca tiveram direitos políticos, educação, assistência médica, sindicatos, etc. (com a exceção dos anos em que existiram as Ligas Camponesas), com a ditadura militar, se viram à rercê de um Capital a procura de valorização, sem entraves e limites de atuação.

O Estado, por um lado, fornecia financiamentos, criava estoques reguladores, garantia preços compensadores, etc. E por outro lado, este mesmo Estado, pela repressão, cuidava de eliminar qualquer intento de resistência por parte dos camponeses. Com todas essas facilidades e garantias, o Capital se dirigiu para as áreas de valorização mais rápida e segura: a agricultura de exportação (café, soja, cacau, laranja, etc.) e principalmente depois do Proálcool, para a cultura da cana de açúcar. Ou seja, deixado por si mesmo, o Capital se preocupa apenas pela agricultura que alimenta o estrangeiro e faz funcionar os motores.

Em sua busca de valorização, o Capital deslocou fronteiras agrícolas, expulsou posseiros, dizimou índios, afastou populações, destruiu formas familiares de produção, etc. Tudo isso contribuiu para criar um novo tipo de trabalhador rural: o boia-fria.  Subproduto da modernização capitalista do campo brasileiro, o boia-fria é o assalariado que sofre um dos mais brutais processos de exploração capitalista. Arrancados de suas terras, espalhados pelas periferias das pequenas cidades, sem garantias trabalhistas de espécie nenhuma, os milhares de boias-frias perderam até mesmo sua identidade cultural já que foram impelidos a viver uma marginalidade mal suportada pelos próprios moradores das cidades para onde se deslocaram. Tudo isso com o agravante de boa parte desses boias-frias serem mulheres, velhos e crianças. Todos submetidos a um regime de exploração que combina a extração de mais-valia absoluta (jornadas de trabalho de 10 horas ou mais) e de mais-valia relativa (salário em função da produtividade).

As últimas greves dos canavieiros de Pernambuco jà vinham prenunciando o fim da era de tranquilidade para o Capital atuante no campo brasileiro. A revolta dos boias-frias da região de Ribeirão Preto foi a demonstração clara do que o único limite à espoliação do Capital é aquele da ação direta e organizada dos trabalhadores. A revolta dos canavieiros começou no dia 1º  de maio na pequena cidade da Guariba. As causas imediatas da revolta foram basicamente as seguintes: a mudança, pelos patrões, para o sistema de corte de cana em sete ruas (fileiras). Em vez de cinco, como há anos vinha sendo feito. O sistema de sete ruas faz com que os boias-frias produzam menos e como recebem por tonelada de cana cortada, seus ganhos seriam menores. Além disso, queriam que no início da safra fosse estabelecido, através de discussões com os usineiros, um preço determinado para o seu trabalho, para que não fossem lesados. Não foram atendidos. Juntou-se a isso os aumentos sucessivos nos preços das taxas de  água cobradas pela Sabesp — a água encanada é o único serviço que chega a seus barracos — que não podiam pagar e por isso tiveram o fornecimento interrompido.

Na manhã do dia 15 os 10 mil trabalhadores rurais de Guariba cruzaram os braços. Os caminhões encarregados de recolher os boias-frias para as usinas foram obrigados a parar por causa dos piquetes. Depois, a maioria dos trabalhadores retornou ao centro para realizar uma manifestação. Na cidade, uma multidão de boias-frias invadiu, incendiou e demoliu dois prédios da Sabesp, ateou fogo a três veículos, depredou e saqueou um supermercado e danificou uma casa. A Polícia Militar reprimiu a revolta com a brutalidade habitual. Houve violentos choques. No final, uma pessoa morreu baleada e 25 ficaram feridas, das quais 14 a bala.

No dia seguinte, uma assembleia de trabalhadores definia uma pauta de reivindicações composta de 19 itens. A principal deles era a volta do sistema antigo de corte de cinco ruas. Os grevistas também queriam que fosse estabelecido um recibo de produção para saberem no fim do dia quanta cana cortaram e quanto dinheiro deveriam receber;  aumento no preço do corte de cana; horas extras no período de transporte de suas casas até  o trabalho, equipamento (facões, luvas etc.) gratuitos,  assistência médica, etc.

Enquanto isso, a revolta começou a se alastrar para outras cidades da região. Neste mesmo dia 16, entraram em greve os apanhadores de laranja de Bebedouro. Entrementes, com o fim de apressar a decisão dos usineiros, os boias-frias de Guariba começaram a colocar fogo nos canaviais. Percebendo que a cana começava a faltar os usineiros decidiram ceder. No dia seguinte, uma assembléia de 10 mi trabalhadores recebia a notícia de que os usineiros resolveram atender 90% das reivindicações. Era a vitória do movimento. A greve acabara. Começava a festa. Nos dias seguintes, acordos semelhantes eram assinados com os trabalhadores das outras cidades.

"Foi a maior conquista dos trabalhadores rurais em 20 anos de luta" afirmava no final da assembleia o advogado Leopoldo Paulino, da Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de São Paulo, que participou das negociações. Foi principalmente um exemplo de luta para todos os trabalhadores do campo e da cidade. Pois, demonstrou, mais uma vez e de maneira eloquente, que quando estes se unem, se organizam com autonomia e partem para a ação direta, a vitória é praticamente certa e, mais importante ainda, a destruição final do capitalismo se torna mais viável e concreta. O movimento dos boias-frias foi, antes de tudo, uma experiência exemplar de ação direta. Pois, apesar de nas assembleias haver alguma presença de políticos e burocratas sindicais, a luta foi, o tempo todo, basicamente assumida pela maioria dos trabalhadores envolvidos. Os trabalhadores não deixaram em momento algum que os políticos e seus partidos tomassem conta do movimento, como eles sempre tentam fazer e, às vezes, conseguem.

Até mesmo o sindicato foi atropelado pela decidida e firme ação direta dos trabalhadores. Segundo um boia-fria, "não teve nenhuma decisão do Sindicato, que só ficava falando de negociação, enquanto o pessoal das indústrias nem dava bola para os nossos pedidos. Aí a gente foi falando uns com os outros e resolvemos fazer a greve. E ia ser uma greve pacífica, se a polícia não tivesse começado a bater na gente".

Nesta época em que os políticos acenaram primeiro com eleições diretas e depois com as promessas de Tancredo, quando as classes intermediárias fazem passeatas e concentrações para legitimar o futuro governante da transição transada, quando as classes dominantes discutem como superar a crise e explorar melhor os trabalhadores, os boias-frias de São Paulo partem para a ação direta, assumem a direção de sua luta e não se deixam tutelar por políticos e outras pseudo-liderancas, E com isso, apontam o caminho para a emancipação geral dos trabalhadores.
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Veja também: BICHO MAU Nº1.

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