terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A questão da "corrupção" e a vergonha do proletariado de seus próprios interesses humanos

Estamos vivendo uma época de profunda derrota do proletariado. Hoje, os explorados sentem vergonha de seus próprios interesses materiais e, para disfarçá-los, tentam afirmá-los defendendo o interesse do empresariado, do "empreendedorismo", da "competitividade",  que é apresentado a eles como o único "honesto" e "universal", como uma espécie de "imperativo categórico kantiano". Os interesses deles como simples seres humanos de carne e osso lhes causam vergonha porque são considerados por eles próprios como "corrupção", enquanto os interesses mercantis, empresariais, financeiros parecem encarnar liberdade, igualdade, justiça, etc. Por exemplo, vergonha de afirmar claramente que querem uma vida fácil e com tudo de bom sem ter que se submeter aos  "vencedores do mercado", vergonha do interesse de não trabalhar a vida toda e cada vez mais intensamente etc etc. Todos esse desejos, diz-se quase unanimemente, são "corrupção", "jeitinho brasileiro". Para eles, os interesses são sempre corruptos, e os únicos não-corruptos, os "desinteressados", porque respeitam as "regras do jogo", são os "vencedores no mercado", os "empreendedores" etc. 

O que é interessante é que a maior parte do tempo, essa competição declarada pela obediência é "da boca para fora". A maioria está sempre lutando tacitamente para trabalhar o mínimo possível e por fazer ao máximo o que gostam de fazer, contra o mando dos chefes e proprietários. Mas como a confiança uns nos outros é esmagadoramente superada pela confiança em quem paga ou pode pagar os seus salários  (Estado ou empresa), eles evitam falar abertamente de seus interesses uns com os outros (que veem como competidores que ameaçam sua sobrevivência, seu emprego). Desse modo, não conseguem criar uma linguagem que expresse seus interesses humanos, porque tem medo de expressar-los uns aos outros. Eles tem vergonha de seus interesses, que é, como vimos, confundidos com "corrupção". Por exemplo, a maioria se revolta com essas PECs (como a do aumento do tempo da aposentadoria, terceirização etc), porém, como não desenvolvem uma linguagem própria, assumem a linguagem da classe dominante para expressar essa revolta, que então se converte em "revolta na ordem" (aliás, clássica definição de fascismo pelo João Bernardo), uma revolta expressa na linguagem e na forma da classe dominante, a linguagem daqueles que não seriam "corruptos", dos que tem a propriedade privada dos meios de vida e produção, e a quem, na prática cotidiana de guerra de todos contra todos pela sobrevivência, confiam materialmente que, se obedecerem, garantirá sua sobrevivência contra os concorrentes, ao contrário de seus iguais que querem "tomar seu trabalho". Daí a revolta deles se expressa como apelo a uma "força maior" (por exemplo, Trump, Bolsonaro, ou pedidos para que haja chefes que punam e recompensem com mais força e rigor) que resolva todos os problemas através da repressão e matança, para defendê-os contra seus iguais, que são vistos como "inimigos" (tanto os ainda mais pobres quanto estrangeiros, migrantes etc).

Para que os proletários criem uma linguagem autônoma, pode ser útil retomar e aperfeiçoar a ética de Hipócrates, que apresenta uma interessante contraposição ao conceito de "corrupção" incessantemente usado pela classe dominante. Afinal, em seu sentido essencial, corrupção é fazer algo em troca de outro algo (em busca de recompensas e por medo de punições), ao invés de fazê-lo como algo que vale por si só, algo de cuja necessidade, humanidade e ética a atividade de produzi-lo se justifica por si só...

Assim, compartilhamos esse resumo da ética de Hipócrates que encontramos neste blog

"Salvar vidas, a arte da medicina, está acima do poder, do dinheiro e das leis dos reinos em que se passa exercendo a medicina. O verdadeiro significado de corrupção não é quebrar as regras, mas exercer a arte como se não fosse válida por si só, exercendo-a, pelo contrário, por outra coisa alheia, como o dinheiro e as promessas e ameaças de quem tem poder e faz as leis. Se o médico não ama o que faz, ele vai se vender e causará dano, porque seu interesse será ganhar mais, buscando enganar e agradar quem lhe paga; em troca, torna-se escravo de quem tem dinheiro. O médico deve ser livre, autônomo, formando com outros uma comunidade que compartilha livremente as descobertas da medicina, sem se submeter a reinos, cidades ou povos, para servir a humanidade." (Resumo da ética hipocrática baseado nos textos “Acerca da arte”, “Epístolas”, “Preceitos” e outros. Resumo feito a partir de várias fontes, principalmente as contidas no livro "Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença". Henrique F. Cairus, Wilson A. Ribeiro Jr.)


humanaesfera, janeiro de 2017


Veja também outros textos sobre ética:





sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Lukács sobre a cultura e sociedade capitalista

Alguns trechos interessantes do texto Velha e nova cultura, de György Lukács:


"A libertação do capitalismo significa a libertação do domínio da economia. A civilização cria, assim, o domínio humano sobre a natureza; mas, como conseqüência, o homem cai sob o domínio desses meios que haviam lhe dado a possibilidade de dominar a natureza. O capitalismo assinala o ponto culminante desse domínio. [...]


A característica principal da organização social capitalista deveria ser buscada então no fato de que a vida econômica deixou de ser um instrumento para a função vital da sociedade e se colocou no centro: se converteu em fim em si mesmo, o objetivo de toda a atividade social. A primeira conseqüência, e a mais importante, é a transformação da vida social em uma grande relação de troca; a sociedade em seu conjunto tomou a forma de mercado. Nas distintas funções da vida, tal situação se expressa no fato de que cada produto da época capitalista, como também todas as energias dos produtores e dos criadores, reveste a forma de mercadoria. Cada coisa deixou de valer em virtude de seu valor intrínseco (por exemplo, valor ético, valor artístico): tem valor unicamente como coisa vendável ou adquirível no mercado. Tudo o que este realizou destrutivamente sobre toda a cultura - expressando-se esta seja em atos, em criações de obras de arte, ou em instituições - é algo que não exige análises ulteriores. Da mesma maneira que a independência dos homens das preocupações de sustento e a livre utilização de suas próprias forças como fim em si são a condição humana e social preliminar da cultura, assim também tudo o que a cultura produz só pode ter valor cultural autêntico  quando tem valor por si só. No momento em que assume o caráter de mercadoria e entra no sistema de relações que o transforma em mercadoria, cessa ainda sua autonomia, a possibilidade da cultura.
Mas em outro ponto o capitalismo corroeu nas raízes a possibilidade social da cultura. Este ponto está constituído por sua relação com a fabricação dos produtos culturais. Já vimos: do ponto de vista do produto, a cultura é impossível quando os produtos não levam em si seu fim. Do ponto de vista das relações entre produto e produtor, a cultura é possível só onde o surgimento do produto constitui - com relação a seu criador - um processo unitário, em si acabado. Ou seja, um processo cujas condições dependem da possibilidade e das ações humanas do criador. O exemplo característico para um processo de tal caráter é a obra de arte, onde o nascimento da obra é, definitivamente, em sua integridade, resultado da atividade do artista e onde a peculiaridade da obra está determinada pelas qualidades individuais do artista. Nas épocas pré-capitalistas este espírito artístico dominou toda indústria. A impressão do livro era em essência tão pouco distinta de escrevê-lo como a pintura de um quadro o era da fabricação de uma mesa (em relação ao caráter humano do produto). Pelo contrário, a produção capitalista não só tira do trabalhador a propriedade do meio mas também, por conseqüência da divisão do trabalho, mais fortemente especializado, fragmenta o processo de fabricação em partes, nenhuma das quais é tal que origine algo significativo, em si e por si acabado. Não existe trabalho singular que não esteja em ligação imediata e perceptível com o produto terminado; esse processo tem um sentido somente para o cálculo abstrato do capitalista; só enquanto mercadoria está dotado de sentido. Ao se estender a indústria, intensifica-se mais ainda a desumanidade dessa relação. Na divisão do trabalho que existe dentro da manufatura, mesmo sendo o processo de fabricação sumamente fragmentado e despedaçado, a qualidade das partes singulares do produto dependia sem dúvida das atitudes físicas e espirituais do trabalhador; enquanto que na indústria desenvolvida toda relação entre produto e produtor foi suprimida. Nela, então, o processo produtivo depende definitivamente das possibilidades das máquinas; o homem serve a máquina, se adapta a ela; a produção se torna completamente independente das possibilidades e atitudes humanas do trabalhador.
Junto a essas forças que destróem a cultura e que nós consideramos até aqui do ponto de vista do produto e do produtor singular e isolado, no capitalismo atuam ainda outras similares às primeiras. Podemos observar a mais importante quando consideramos o nexo recíproco dos produtos. A cultura das épocas pré-capitalistas era possível graças à relação de continuidade em que se encontravam os produtos culturais singulares: um produto levava adiante o problema colocado por outro, e assim sucessivamente. A cultura em seu conjunto delineava portanto uma determinada continuidade de desenvolvimento lento e orgânico. Assim era possível que em cada campo se afirmasse uma cultura coerente, unívoca e entretanto original; uma cultura cujo nível superava também em muito o nível mais alto alcançável através de atos individuais, isolados. Enquanto revolucionava o processo produtivo, enquanto tornava permanente este caráter revolucionário através do caos da produção, o capitalismo suprimia a continuidade e a organicidade da velha cultura. Por um lado, a revulocionarização da produção significa, para a cultura, que o processo produtivo se origina de contínuos momentos que influem de maneira decisiva a marcha e o modo da produção, sem que isso se ligue logo de maneira alguma com a essência do produto - uma obra como fim em si - (é assim que na indústria, na arquitetura desaparece a autenticidade do material). Por outro lado, como conseqüência do produzir-para-o-mercado (sem o qual a revolução constante da produção seria inimaginável), vem à luz na fabricação do produto tudo o que é mera novidade, o elemento sensacional e caduco, sem consideração alguma pelo problema da contribuição ou perda do autêntico, íntimo valor do produto. O reflexo cultural desse caráter revolucionário é o fenômeno que habitualmente chamamos moda. Moda e cultura configuram por suas essências conceitos que se excluem reciprocamente. O domínio da moda significa que a forma e a qualidade dos produtos postos no mercado mudam a breve prazo, independentemente da relação com a beleza e a finalidade. A essência desse mercado contém o fato de que dentro de determinados períodos devem ser fabricados novos objetos, de modo que possam diferenciar-se radicalmente dos precedentes; de forma que, ao produzi-los, seja impossível se basear sobre experiências recolhidas na produção precedente. Da rapidez do desenvolvimento resulta a impossibilidade de recolhê-las e senti-las; ou ninguém quer mais se basear nelas, pois a essência mesma da moda requer justamente o oposto ao velho. Assim desaparece lentamente todo desenvolvimento orgânico: aparece uma oscilação sem meta e um diletantismo vazio e ruidoso."
O texto completo pode ser encontrado neste link: Velha e nova cultura, de György Lukács

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