segunda-feira, 11 de junho de 2012

A determinação do acaso e o acaso determinista

O materialismo afirma que tudo consiste em diferenciações em que nada é indiferente a nada. Se existisse  diferença indiferente, os imaterialistas (espiritualistas, idealistas, dualistas, etc.) poderiam estar certos.  No entanto, a única coisa que sabemos é que apenas o nada é indiferente, todo o resto são diferenças diferentes - em suma,  o mundo consiste em diferenciações diferenciantes.

Dizer que as diferenças diferem significa dizer que algo só existe em relação com outros algos, nunca num absoluto. Então, vejamos o que são "relações". A primeira aparência, a mais superficial, das relações é o limite (algo só é algo porque se limita com outros algos, quer dizer, é separado deles), mas esta é sua aparência imediata. O essencial é saber como  algo vem a ser, isto é, saber como e por quê algo existe ao invés de nada, como algo se separa transitoriamente de todo o resto e se torna algo. Em outras palavras, a relação essencial que importa investigar é a determinação.

Além disso, nem toda relação entre algo e outro algo é de limite. O pão não se limita com o trigo que o compõe,  o cérebro não se limita com as células nervosas, como também a mente não se limita com o cérebro, e nem as idéias se limitam com a mente, por exemplo. E no entanto, têm relações e unicamente mediante essas relações eles são diferentes.

Por que algo existe ao invés de nada?

A condição para que algo exista ao invés do nada é não apenas que esse algo seja causado por outro algo, mas que o efeito (algo) influencie a causação (o outro algo) e se torne causa de sua própria sua manutenção, de sua permanência. É o que Baruch Espinosa chamava de conatus.

Exemplo: Uma pedra é um efeito dos minerais que a compõe, mas ela só existe porque o efeito (a própria pedra em sua relação a outras coisas, inclusive outras pedras) afeta suas causas de modo que os minerais continuam mantendo uma certa disposição entre si que impede o esfarelamento da pedra durante o tempo em que existe. A pedra enquanto pedra (efeito) torna-se causa da permanência de suas próprias causas (aglutinação dos minerais) devido à relação dessa pedra com outras pedras e materiais a sua volta, que estão dispostos no lugar de modo a não esfarelá-la.

Assim, em última instância, a determinação de algo é puro acaso. Acaso não significa sem causa e nem indiferença, mas sim que a determinação não é predeterminada, mas, pelo contrário, que ela surge da confluência de diversas determinações simultâneas puramente contingentes e heterogêneas.

Uma "supermente" (o "demônio de Laplace"), dizem, poderia saber todos os encadeamentos causais e prever todos os resultados. Para essa supermente, o acaso não existiria. Mas essa concepção de uma super-alma, ao negar o acaso, não é determinista, mas predeterminista. E também não é materialista, mas dualista, já que supõe a existência de uma super-alma fora e acima do universo causal, isto é, uma diferença indiferente absoluta. Ou seja, é fantasia.

Tudo o que podemos saber só sabemos unicamente através de nossa determinação singular no universo material e nunca por uma mente flutuando indiferentemente acima da matéria que saberia tudo do universo. Desse modo, acaso e determinação engendram-se mutuamente no materialismo.

O novo e sua permanência (surgimento e continuidade / gênese e reprodução)

Quando o acaso gera algo, surge a necessidade, que é a duração desse algo.

Muitas vezes, as causações originais de algo (as causas de sua gênese, de seu surgimento) diferem das causações de sua manutenção (as causas de sua continuidade, de sua reprodução, de sua permanência).

O mundo pulula de causações simultâneas acontecendo a todo instante, mas algo novo só surge quando, por simples coincidência, algumas causações confluem e se sustentam mutuamente nessa confluência, gerando algo diferente. É essa sustentação mútua das determinações que as separa das demais determinações  e as limita com outros algos, dando surgimento a algo novo.

Esse algo novo pode ser tão fortemente mantido separado dos demais algos através dessas determinações mútuas que ele pode continuar se sustentando por causações diferentes das originais (diferentes das causações originais dessas determinações mútuas desse algo).

Exemplos: O surgimento dos seres vivos é um caso paradigmático deste caso (surgimento da separação do meio interno do externo através da vesícula celular e reprodução mediante genes). Também é o caso da acumulação primitiva do capital (a barbárie da separação sangrenta da população dos meios de produção confluiu com o comércio, causando o capital industrial) com relação à reprodução do capital (igualdade e liberdade entre mercadores "civilizados" causa a sujeição do trabalho vivo ao trabalho morto, isto é, o capital). Do mesmo modo, uma nova idéia (um conhecimento, uma percepção ou um desejo) na mente pode se sustentar por razões diferentes das razões que lhe deram origem.

Crescimento e morte

As coisas, se desdobram, e enquanto permanecem, vão se tornando determinação entre outras de um conjunto de determinações mútuas internas de outros algos e assim por diante, através do mundo.

Inevitavelmente, a separação de algo com relação a todo o resto não permanece para sempre. Se permacesse eternamente, seria o caso mais próximo da diferença indiferente defendida pelo imaterialismo. Mas não é o caso.

Algo morre quando  suas determinações mútuas internas tornam-se insuficientes para manter a unidade desse algo  Há dois modos de algo morrer: por crescimento exagerado e por determinações externas agressivas. O crescimento exagerado faz com que o peso da unidade desmorone sobre suas próprias determinações mútuas internas que se tornaram insuficientes. Já no outro modo de morte, as determinações externas agressivas entram em relação com as determinações mútuas internas desagregando-as, fazendo a unidade desmoronar devido aos seus pilares serem puxados por todos os lados.

As determinações externas destrutivas, além disso, podem ser o próprio resultado da ação das determinações mútuas internas, que assim destroem suas próprias condições de existência. Por exemplo, a destruição pelo homem do ecossistema que é a condição de sua prória vida.

Pode ocorrer que um dos produtos das determinações mútuas internas de algo cause o desmoronamento da unidade, sobreviva e lance as bases para que novas determinações mútuas sejam reunidas e formem uma nova unidade diferente da anterior. Exemplos: A morte do comunismo tribal dando lugar à sociedade de castas, assim como a morte desta última dando lugar à sociedade de classes (capitalismo). Também é o caso dos seres vivos (genes, sementes, reprodução), e também dos programas de computadores (que pode ser transferidos para vários computadores).  Mas certamente até esse tipo de continuidade também não dura para sempre.

Conclusão

Não há necessidade da imaterialidade para explicar o acaso e, daí, a liberdade. Como vimos, o acaso é a própria determinação. Logo, pode ser explicado de modo plenamente materialista, isto é, sem precisar recorrer a nenhuma diferença indiferente imaginária.



Humana Esfera, 6/2012



Bibliografia 

  • Lucrécio - Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura)
  • Baruch Espinoza - Ética
  •  Jean Meslier - Ateísmo e Revolta, os manuscritos do padre Jean Meslier (Paulo Jonas de Lima Piva)
  • La Mettrie - O Homem-máquina
  • Holbach - Sistema da Natureza
  • Hegel - Fenomenologia do Espírito
  • Marx - Manuscritos econômicos e filosóficos, A Ideologia Alemã, Grundrisse
  • Joseph Déjacque - A humanisfera 
  • Bakunin - Deus e o Estado
  • Michel Serres - O Nascimento da Física no Texto de Lucrécio
  • Deleuze & Guattari - Capitalismo e esquizofrenia, volume I (O Anti Édipo) e II ( Mil Platôs)  

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